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O FANTÁSTICO MUNDO DE BACO

Acho que todo mundo viu o vídeo do canal Quadro Branco sobre o Baco Exu do Blues, Matrix e a Jornada do Herói. Se não viram, vejam! O trabalho do pessoal do Quadro Branco é imprescindível. Conteúdo de muita qualidade, que expande o universo das referências e fontes da galera, tudo explicado de uma forma simples e enxuta, sem deixar nenhuma ponta solta. Mas que não entrega tudo, forçando o povo a pesquisar, ler, estudar!!! Perfeito!

Desde quando o Baco surgiu na cena, ao lado de Diomedes Chinaski, com Sulicídio, ele lançou já lançou bastante conteúdo. Sejam singles, cyphers, participações ou a elevação de um conteúdo que ele já havia lançado, como seu EP solo e o seu trabalho com o D.D.H. Definitivamente ele foi um dos responsáveis por movimentar a cena do rap em 2016 e continua a todo vapor em 2017. Mas, eu não sei se para vocês possa aparentar dessa forma, o universo que habita Baco em suas letras sofre algumas distorções se comparado ao universo comum retratado pelo rap e a cultura hip hop em si. Aproveitando o ensejo, talvez seja interessante olharmos com um pouco mais de atenção ao que podemos chamar de “o fantástico mundo de Baco” de uma forma mais literária.

Em “Tropicália”, lançada num episódio do Rap Box, ele deixa bem claro que “nós somos o renascimento da poesia de escória”. Isso já diz bastante coisa sobre o desenvolvimento da escrita, digamos, irreverente do MC baiano. A primeira coisa é que ele consegue, numa frase séria, brincar com o próprio tipo de poesia que ele costuma praticar, que é a poesia de escárnio.
Poesia de escárnio é, dentro da lírica (guardem esse termo) galego-portuguesa, a poesia da subversão, do maldizer, da sátira. Além de ser uma poesia “diferente” dentro dessa cultura lírica, ela não segue as mesmas regras que as outras expressões poéticas (poesia de amigo e poesia de amor) na própria forma de escrever. A principal delas é que a poesia de escárnio, via de regra, é personificada numa pessoa para se fazer a sátira ou o ataque. Fale sobre o governo, sobre o sistema, classe, raça, gênero, a tudo deve-se personificar. Já ouviram “O Culto”, certo? Então vocês se pegaram pensando nessa parte aqui: “Jesus voltou, é o hiphop, uma mulher preta/Com doze manos em meio a era das gangues/Puto com uma nove milimetro e 79”. A mulher preta é a personificação do hip-hop, que é a ressurreição dos ideais de salvação e justiça que Jesus Cristo guarda na sua essência. A poesia de escárnio faz com que, em essência, Sulicídio seja autoexplicativo. Baco e Diomedes personificaram todas as críticas que quiseram fazer ao sistema. Isso já foi muito explicado por aí em caudalosas entrevistas, comentários e em um cypher feito só para esclarecer o sentido da música, quando tudo isso não passou de um recurso poético. Como Froid disse: “o futuro terá cura/o futuro é literatura”.

O retrato que Baco começa a criar dentro da sua obra é promissor por exibir uma composição lírica extremamente elevada. E composição lírica não é o aparecimento de palavras difíceis ou o uso de várias técnicas de rap juntas, como eu expliquei em uma recente matéria aqui no site. Essa exuberância (termo vintage de jornal, me permitam a licença poética) lírica de Baco assume uma nova cara para o rap e para o que nós conhecemos do Nordeste, mais precisamente de Salvador, onde ele nasceu e se criou. São pequenas distorções que ele provoca e que dão amplitude à sua arte e reverberam no que nós, ouvintes, tomamos como realidade, além de diferenciá-lo completamente no atual cenário, claro.

Antes de avançarmos um pouco mais, só gostaria de deixar claro que as milhares de referências e alusões que ele vai citando nos seus versos (e são muitas mesmo), eu vou tomar como uma técnica de escrita, muito comum no rap aliás, e como sua formação intelectual, já que o mesmo disse que a mãe é professora de literatura e eles tinham um acordo para que ele lesse os livros clássicos de literatura universal e, imagino eu, que sua mãe como professora devia pegar no pé em relação a desempenho acadêmico. Portanto, não entrarei nesse mérito. Isso seria uma análise mais técnica que lírica e aí, além de estender o texto, perderíamos o rumo. Certo? Certo.

Se você quer saber o que Baco conhece de Salvador, ou da própria vida, ouça “Serra Leoa”. A letra dessa música, em particular, é a síntese de como a composição lírica de Baco é capaz de distorcer a realidade que conhecemos e nos transportar para uma realidade que só ele conhece, apesar dele fazer questão de nos manter familiarizados com esse cenário em toda letra que escreve. Um pequeno pedaço que considero bastante interessante e que resume bem o que é o universo de Baco é esse aqui: “Rap BA só vira-lata/Sinta o molar no seu pescoço/Se Deus é roteirista, vida é só um esboço/Quer ser ameaça então faça mais esforço/Peça reforço, se conforme e coce os bolsos”. Como nas infinitas vezes em que se diz vilão, ele faz um retrato fiel da periferia soteropolitana sob a ótica de algo maior que o “perigoso”, ele diz com uma certeza que sobrepõe o próprio destino, já que é um fato.

Ele como Deus grego e orixá que abre os caminhos tem esse poder de manipular o destino, escrever certo por linhas tortas e tudo mais. Você encontra isso numa série interminável de braggadocious que ele lança nas letras, como esse aqui na própria “Serra Leoa”: “Vagabundo, eu sou a quinta dimensão/Me subestimaram uma vez e Aquiles perdeu o tendão”. Pesado, não? Acho que é uma das melhores linhas dele. Mas voltando a parte lírica, tomando esse controle da própria realidade e distorcendo os fatos para que todos vejam a realidade que ele molda, tudo é muito intenso, muito vívido. Isso, dentro de alguns círculos literários, é chamado de ultra realidade, como se usássemos aqueles óculos de realidade virtual da Google, sabem? Acontece que Baco faz isso com palavras, o que é muito mais difícil.

Todo esse quadro da Salvador marginal é trabalhado nas suas composições, até mesmo nas que soam como ataque, como na música “Sujismundo”. É algo entranhado na sua essência e que se desdobra de diversas maneiras, de acordo com a demanda. Existe uma exaltação à energia e ao empoderamento dessa Salvador marginal em “999”, existem algumas linhas que exploram o sexo e uma relação à dois em “Tropicália” e “RXPJXZZ”, uma urgência de empoderamento nas questões de raça e classe em “Faixa Preta”. A aproximação da sua realidade com qualquer tema que Baco queira compor, transformam sua poesia em retratos de um mundo que só ele é capaz de manipular. Isso é liricamente fantástico. Nem o melhor MC do mundo seria capaz de tomar o lugar de Baco. Não que ele seja o melhor MC do mundo, mas ele criou o próprio mundo, intransponível, e se aproveita muito bem disso para construir liricamente algo único e muito sofisticado. Sim, em termos de lírica, Baco é o cara do momento, vocês aceitando ou não.

Por escrever intensamente sobre essa realidade, Baco costuma revisitar versos antigos e utilizá-los repetidas vezes. Isso acontece muito com “Serra Leoa”, onde ele coloca versos em “Sujismundo” e na cypher “Poetas no Topo 2”, por exemplo. Isso não é, acredito, falta de inventividade ou reciclagem de versos, como li em alguns comentários avulsos. Levando em conta todo esse conceito que eu expus, isso é quase que inevitável. Ele versa sobre o mundo que ele vive da forma que ele o criou, as referências fazem parte disso. É uma forma de perpetuar a obra, marketing para sons antigos que poucos se ligavam e reforçar essa visão de mundo dele. Muitos poetas que veneramos hoje em dia fizeram isso, principalmente os poetas malditos e os beatniks, aos quais podemos aludir algumas partes da obra de Baco tanto em técnica quanto em sentido, ou lírica se preferirem.

Deu para sacar que “o fantástico mundo de Baco” é a soma da imagem de Salvador que ele tomou para si e o quanto ele estudou e abusou de inventividade para descrever e, mais difícil, fazer com que o ouvinte se envolvesse com esse mundo, resultando numa construção lírica única. O mundo de Baco se sobrepõe ao nosso, como num filme de ficção científica, e gera alarde, caos e medo, talvez. Para quem é da cultura hip hop, sabemos que o caos representa revolução e evolução na cena, o que resulta numa entrega muito grande de Baco Exu do Blues e coloca certo peso em sua “jornada do herói”. Aos que sentem medo, revisitem as últimas letras de Baco e terão suas respostas.

/Escrito por Caio Lima
/Revisado por Gustavo DG

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