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Construção lírica e a perpetuação do hip hop

Lá no escopo de review do álbum novo do Djonga, “Heresia”, eu falei um pouco sobre como o processo de elaboração da escrita é violento. E essa elaboração da escrita carrega um monte de elementos atrelados e que são únicos daquele momento específico. As mais comentadas por aí são as visíveis ou as analisáveis. No caso do Djonga, todo o tipo de técnica eu ele usa (de analogias até multissilábicas sinéxtras), alguns já visualizam o flow que vão usar e o formato do registro, a métrica, essas minúcias todas. E por que eu digo que esse processo é um processo violento, agressivo? Pode parecer óbvio, mas eu tenho uns estudos e ideias, e talvez isso possa auxiliar a destravar alguns pensamentos em vocês ou apenas gerar uma discussão acerca das coisas da vida.

Quando Diomedes diz “a arte mata a morte”, nós podemos interpretar de duas maneiras. A primeira é que a arte salva-vidas, tira a galera do crime, traz auto estima para rapaziada e pode ser a fonte de um futuro melhor para a pessoa e para toda uma comunidade. Outra interpretação dessa frase, seria que “a arte mata a morte” por tornar o artista algo eterno. Através de gerações e gerações e gerações o seu rap, no caso, será ouvido e você será referência de pensamento, de estilo, de arte, enfim. É nesse contexto que mergulharemos.

A arte só é eterna, porque se alimenta da vida. É uma afirmação forte, talvez, mas é real. Criar um rap, por exemplo, é entregar um pedaço seu a quem quiser ouvir. Foi com esse raciocínio que fiz o texto do Shaw, por exemplo. Tentei captar tudo o que podia através das letras dele. A questão é que você doar um pedaço seu, deixa, naturalmente, um vazio. Quem nunca escreveu algo para alguém e após colocar todo o sentimento que tinha ali, não ficou com aquela sensação de expectativa, de frio na barriga? Isso é uma forma de vazio momentâneo. Imagine, então, uma pessoa que se dedica a escrever para que outros a ouçam, que deseja fazer arte. É uma coleção de vazios. Você entrega uma parcela da sua vida e, até que você aceite que alguém te entregue uma parcela da própria vida, você vai levando esse vazio.

Chegamos ao primeiro ponto crucial do texto: a arte se estabelece numa relação de trocas, não importando tempo e espaço. Quando eu classifiquei um gênio como sendo o artista que se desvincula das noções de tempo e de espaço, foi para caracterizar essa troca. A construção lírica passa exatamente por esse aspecto de trocas incertas. Você é consumido pelo que faz e consome o que alguém faz, sempre. Essa é a violência de criar arte.

Imagina sentar e compor Vida Loka partes um e dois? É o retrato de uma realidade cruel. Mano Brown teve que abusar de conhecimentos e recordações que, invariavelmente, o machucam, agridem e reverberam em vários aspectos da sua vida, não só o rap. Isso é construção lírica!

Isso não significa que o público receberá suas palavras do jeito que você idealiza. Ninguém é capaz de entender perfeitamente ninguém. Mas isso cria uma conexão emotiva, acontece uma redução drástica do mundo de quem escreve para quem ouve. Mundos esses que a indústria insiste em deixar separados, mas isso é assunto para outro texto. Então, construção lírica é, numa forma genérica, o quão capaz você foi de internalizar tudo o que tinha para escrever e, após escrever, não sentir a necessidade de explicar a origem daquele rap para ninguém, pois aquele é um pedaço seu. Que as pessoas captem o teu sentimento e suas palavras, e criem sua própria interpretação da arte.

Um caso muito legal dessa relação de troca direta e aproximação emocional, foi a campanha do Rincon Sapiência para a galera criar altas artes a partir da música “Ponta de Lança”. Eu vi tanto material bonito sendo produzido, e isso é sinal de que a música inspira. Rincon foi capaz de criar algo que exprime sua visão de mundo, técnica e, principalmente, como ele interage emocionalmente com tudo isso. Dá para acompanhar e sentir muito bem cada barra que ele escreveu, tirar uma interpretação própria e, finalmente, se inspirar, criar, estudar e repassar a informação sobre esses aspectos que foram observados por você.

O mesmo acontece com o Jovem Maka, mas não importa a interpretação e o sentimento que você puxe ou sinta nas faixas, você nunca chegará perto do que ele quis dizer. Isso não é um problema, é só uma questão de que a construção lírica do Makalister é mais fechada nele mesmo. Sua visão de mundo é hermética e, talvez, ele não tenha essa necessidade toda de levar compreensão ou de ser compreendido.

Você não precisa gostar do artista para gostar da arte que ele produz. Na grande maioria dos meios artísticos, não fazemos a menor ideia do que as pessoas são ou deixam de ser em âmbito pessoal. Isso significa que se aparecer um rapper machista, racista ou homofóbico, temos que aceitar por ser a visão de mundo dele? Não! Óbvio que não! O próprio discurso sobre a arte ser uma relação de troca torna essa prática inviável. Se suas impressões de mundo são fixas num modelo que apenas certas pessoas que pensam e agem como você entendem, isso não é arte, é uma reprodução de modelo.

A arte, como processo de uma troca, nunca é pura. Sempre será miscigenada. E isso é ótimo. Não existe hip hop de verdade, senão o hip hop que traz verdades consigo. E isso depende de uma construção lírica por parte do MC, e de uma relação de inspiração e aprimoramento do ouvinte (lembrem-se de Froid: o ouvinte é quem tem que ter o dom). Tudo que conhecemos por lírica reside em nós, que ouvimos rap e participamos da cultura hip hop. Nós somos os responsáveis pela perpetuação da cultura, por preencher os vazios que a arte deixa e a construção lírica coloca uma lente de aumento. O resto é papo para vender show e criar hashtag.

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