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A voz de Nega Gizza vai além do rap

Antes de tudo, todos nós sabemos que a cultura hip hop é algo gigantesco e que não é imprescindível que alguém mexa com rap para que esteja inserido na cultura, porém, ao gostar de rap, se entra em contato com a cultura obrigatoriamente, já que o rap é um elemento do hip hop, certo? Certo. Isso precisa estar bem claro na cabeça de todos nós.

Cultura é algo que não se respeita, se pratica. Pessoas, sim, se respeitam. Uma cultura só se desenvolve a partir do momento em que mais pessoas usufruam de práticas comuns e se sintam respeitadas umas pelas outras, apesar de todas as diferenças. Portanto, é impossível não associar cultura a algo social ou político. É uma discussão que levaríamos anos comentando aqui e, ainda assim, não chegaríamos a um consenso quanto ao tamanho cultural do indivíduo. Contudo, algumas pessoas se destacam por exercerem papéis fundamentais em todos os elementos do hip hop, amplificando a cultura e lançando um olhar mais abrangente sobre pontos que não vemos representados por aí todos os dias. Não, pelo menos, da forma que deveriam ser expostos. Uma dessas gigantes é a Nega Gizza.

Não é fácil ser mulher e, pior, não é fácil ser mulher dentro da cultura hip hop. É uma luta árdua. Imagine em 2002. Imagine no Rio de Janeiro, que à época não exercia uma força tão grande em âmbito nacional no que tange ao rap. Era uma cena fragmentada, cheia de esporões espalhados. É nesse contexto que o único registro musical fechado de Nega Gizza, “Na humildade”, é lançado.

O tom biográfico e a noção geográfica que eu percebi nas letras me fariam utilizar alguns autores para fazer a contextualização poética e ir tecendo comentários, algo muito parecido com o que fiz no texto sobre o Shaw. Mas, parem e pensem um pouco: temos apenas um registro para trabalhar. Acredito que seja mais interessante destrincharmos algumas coisas dentro da cultura hip hop sob a ótica da Nega Gizza do que traçar paralelos a partir dela. Portanto, Nega Gizza é a referência!

O único disco lançado por Nega Gizza completa 15 anos em 2017. Mas, parando para pensar um pouco, é uma obra incompleta. Não por falta de competência. Ali, só em flow, ela já está à frente de 80% dos MC’s atuais. Obras como “Na humildade” precisam de atitudes como respostas, não apenas a simples audição e entendimento. É um manifesto contracultural. É uma exigência de mudança nas práticas culturais vigentes.

Antes de estar caracterizado e ganhar uma fórmula, o “rap de mensagem” era uma composição provocativa, que invocava uma nova perspectiva em relação ao respeito que temos pelo próximo e, após essa análise, uma mudança cultural, ou um manifesto contracultural. Quando eu digo que o “rap de mensagem” é uma fórmula, não é depreciativo, mas é necessário refletir sobre. Aqui talvez façamos uma conexão com algo que eu quero há muito tempo conversar com vocês.

A arte, enquanto novidade, é apenas arte. Não tem classificação e muito menos uma análise técnica por cima. Claro que o mérito inventivo do autor sempre estará ali, mas não existe nada que o classifique. Após certa visibilidade e tempo, vem algum “especialista” (normalmente alheio à cultura) e classifica aquilo como “rap de mensagem”. O nome pega, a música sofre um hype e, de repente, qualquer som naqueles moldes (não é necessário um padrão, apenas a semelhança de estilo) vira “rap de mensagem”, inclusive sons antigos. Aí é uma guerra para saber quem é o criador desse estilo de rap. Sendo que quem reivindica nem imaginava que seu rap seria o “rap de mensagem”. Dá para perceber o quanto o rótulo é prejudicial, não é? Parece que qualquer um capaz de encaixar as palavras da maneira correta e seguir um roteiro de temas, faz. Isso acontece numa escala infinitamente mais vexatória quando dentro do rap existe o “rap de mulher” ou “rap de mina”. Ser rotulado por algo que você faz já não é algo muito legal. Imagine ser rotulado por aquilo que você é!

Com Nega Gizza não foi diferente, ela teve que falar mais alto que todos a sua volta para, simplesmente, ser ouvida. Sua autoafirmação no ideal feminino, impondo sua voz como mulher, falando tão alto quanto os homens, e firmando sua posição de liderança em prol de projetos que integrem a cultura hip hop ao cidadão periférico, torna a música apenas uma porta de entrada para um universo imenso. Isso é a raiz mais profunda da cultura hip hop, galera. Estamos aqui tentando entender a luta constante por liberdade de expressão, por reconhecimento através da luta e do engajamento cultural, por poder ser quem é sem ser discriminada por isso. Se a Nega Gizza não se impõe, não chega com o pé na porta, não grita, não se mete a fazer rap falando o que pensa sem qualquer tipo de censura, ela seria mais uma voz apagada dentro do movimento. Às vezes, para aparecer, você tem que chocar e fazer chover papo reto. Ninguém espera papo reto, porque ninguém quer ouvir. Há 15 anos era assim e hoje, com uma cena bastante maior, continua sendo.

As coisas não são simples, infelizmente. Ninguém que segue a cultura hip hop tem apenas uma batalha na vida. Se Nega Gizza travou uma luta para ser ouvida dentro da cultura como mulher, ela ainda precisava se afirmar perante a sociedade como mulher preta e favelada.

Racismo e sectarismo social não deveriam ser surpresa para ninguém que gosta de rap, mas os tempos mudam e o público também. Ao entrar no mundo do rap, você começa a lidar com um dos elementos de uma cultura muito maior que o estilo musical. É uma cultura criada e cultivada por pretos. Ela não deve ser só preta, ela pode e deve se miscigenar. É a miscigenação que dará abrangência à cultura. Porém, aos que entram agora, não se deve, em hipótese alguma, desqualificar ou diminuir uma reivindicação ou uma luta, por mais que você não concorde. Principalmente se essa luta é ancestral à própria cultura. O hip hop nasceu como um meio de luta contra a escravidão sistêmica, libertação e autonomia. Desqualificar ou, pior (sim, pior), ignorar esses pilares, é desrespeitar os ancestrais de uma cultura que não nasceu com você, mas que permite sua inserção e perpetuação nela sem exigir nada em troca além de respeito para com seus iguais. Não transformem o hip hop numa cultura doente.

E nesses dois pontos específicos, Nega Gizza dá uma aula de visão de mundo e de responsabilidade social. Suas músicas falam sobre a realidade de uma prostituta, sobre o próprio irmão que se envolveu e se perdeu no tráfico, sobre o sofrimento de mãe e de irmã, sobre como é o nascimento de uma favela e sobre a vida do preto e da preta que convivem com o medo, a incerteza, a pobreza, o preconceito e a falta de identidade, como se fossem indigentes na cidade. Abrangência. Ninguém fica de fora do bonde da Nega Gizza. Ela consegue, de alguma forma mágica, representar em versos cada fatia em que somos divididos e desfavorecidos culturalmente. São aulas de geografia, história, sociologia, antropologia, ciência política e filosofia compactadas num álbum e ministradas ao longo de uma vida ajudando pessoas através do hip hop. Isso é lindo.

Olhar para o trabalho da Nega Gizza e ouvir um pouco da história dela, já que o álbum é muito autobiográfico, me fez parar para pensar no quanto nós, como partes de uma cultura, cuidamos tão pouco dela. São 15 anos de diferença e como as mulheres são tratadas dentro da cultura? A gente sabe, não precisa ficar pensando em nomes, catando feijão na cabeça. As porções não são servidas com justiça e equidade, isso é fato.

A questão é que trabalhos como o que a Nega Gizza (não só ela, mas ela é o foco do texto. Ainda assim, são poucos fazendo) faz há duas décadas, são os que fazem a cultura respirar e ter fôlego para se sustentar. Os focos da cultura hip hop, essa que prega respeito, que salva e liberta, estão cada vez menores. A cada dia que o “rap game” vive, um pedaço da cultura morre. A cada verso de MC que evoca mulheres como “putas”, a cultura padece. A cada novo fã de rap que acha bacana sustentar MC’s que desqualificam a luta do próximo, a cultura diminui.

Seria um texto muito legal (e bastante longo) se eu houvesse puxado referências de metalinguagem, ruído social, registros autobiográficos e outras expressões poéticas e literárias. Porém, na hora de falar sobre certa obra temos que escolher uma linha de raciocínio e seguir. Aqui não é diferente e eu preferi seguir pela moral da história. Ouvir “Na humildade” é ouvir a história de uma mulher preta e favelada que tenta usar a cultura hip hop como meio de libertação para si e para os seus. E, repito, Nega Gizza em 2002 era melhor que muito MC da época e é melhor que 80% dos MC’s atuais em qualquer questão técnica.

Pesquisem mais sobre a CUFA. Tentem ajudar. Transmitam a mensagem da cultura. Sejam mais tolerantes, mais interessados e mais aplicados ao se verem inseridos no rap e, consequentemente, na cultura hip hop. Se seu MC favorito fala muito na internet, ouvir “Na humildade” pode ajudá-lo. Normalmente, os que já ouviram não falam tanto assim, porque estão preocupados em realmente fazer alguma coisa.

Obrigado, Nega Gizza. Nas suas mãos o hip hop sobrevive.

Nota 1: Esse texto foi construído em coautoria com a minha parceira de vida, Camila Priotto Mendes. Por anos ela tem a paciência necessária para me explicar que o feminismo não se trata apenas de direitos e deveres, como fazem aparentar em veículos midiáticos. E, sim, de demandas femininas, justiça e equidade. Sem entender isso, eu jamais ouviria a Nega Gizza tão atentamente, a ponto de construir esse texto. E sem a Camila, eu jamais teria chegado até aqui.

Nota 2: Preferi não utilizar as palavras machismo e feminismo, para ver se a grande maioria do público se toca e percebe a luta do outro. Infelizmente, se as utilizasse, meu texto seria taxado já no primeiro parágrafo e não seria lido. Sejam mais solidários e abram a cabeça de vocês para a realidade do próximo.

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