A concepção de um projeto é um mundo à parte. Tentar compreender o disco dentro do que está registrado pelo MC e do que eu sinto, é mergulhar nesse mundo e permitir que as ideias e pensamentos fluam livremente. Por isso não acredito em resenhas que saem após uma semana do lançamento do disco, principalmente se é de um MC que tem consistência e relevância líricas.
Se me dissessem que após dois meses de lançado o álbum Heresia sumiria tão rápido das discussões de internet, eu não acreditaria. Não é um sumiço do tipo “ninguém fala mais sobre”. As pessoas falam, mas o que mais se vê é: “é bom, mas está abaixo do que eu esperava” ou “ele manda bem, mas é muito repetitivo nas referências e punchlines, sempre com o mesmo flow e isso cansa” ou “não entendi o porquê do Djonga ter feito um álbum tão rápido e lançado assim, seria melhor se tivesse lançado um Castelos & Ruínas (BK’) mesmo demorando mais tempo”.
Quando pensamos sobre arte, não me parece ser agradável tornar-se senso comum. Principalmente quando você lança um álbum. Mais ainda quando você lança seu primeiro álbum e enxerga o hype mudar de direção de forma bastante brusca. O Djonga continua sendo o Djonga, porém, o hype criado em torno da imagem do Djonga vem acompanhado de expectativas dentro de um universo fechado, de um padrão. E, se o MC decide sair desse universo, o peso desse senso comum ainda fala mais alto entre o público. Mais alto do que a própria arte. O que me fez refletir sobre o que representa Heresia.
Djonga aproveitou o status de revelação que conquistou e, ciente do impacto que causou na cena, acelerou o processo para fazer seu disco solo antes mesmo de qualquer trabalho fechado com seu grupo de origem, o DV Tribo (leiam com a voz da Clara Lima). É uma jogada de risco. Mas big playaz assumem riscos, certo? Não é um disco perfeito. Não vejo que esse disco tenha nascido para ser perfeito. Ele mais me parece uma transição de ciclos de uma mente que ainda não assimilou exatamente tudo o que é capaz de fazer.
Eu notei a repetição de algumas técnicas de escrita ao longo do disco e, sinceramente, não me incomodou. Também não acho que o tom do disco foi tão monocórdio quanto falam. Heresia está muito longe de ser algo reto. Djonga tem boas alterações de flow, na maior parte do tempo bastante sutis, priorizando a construção da ideia. É uma questão de escolha, pura e simplesmente. Se lançado em 2015, ninguém usaria o excesso de punchlines para justificar qualquer desagrado com a obra. Me preocupa esse zelo pela parte técnica de quem nunca escreveu uma linha ou pior, de quem não tem propriedade sobre o que escreve.
Temos um disco de papo reto aqui. Não tem um bate-cabeça igual “Vida lixo” ou qualquer coisa mais dançante. Nem o que seria uma lovesong é uma lovesong de verdade. São faixas conflituosas, confusas, com “excesso de informação”, profundas e muito bem escritas. Sim, isso é possível. Talvez não seja explicável, mas é possível.
O que é memorável nesse disco, também é o que não o dá o status de perfeito, tornando a análise ainda mais desafiadora. Durante todo o processo de escrita Djonga quer se mostrar preparado para encarar um novo ciclo de sua vida; como pai, referência dessa nova geração de MC’s ou exercendo algum tipo de ativismo, por exemplo. Isso fica muito claro nas letras mais lineares, ou não tão conflituosas, que o disco possui: Corre das notas, Santa ceia e O mundo é nosso. Aqui ele dá passos à frente e assume com autoridade sua postura em cada aspecto que aborda.
Porém, ele não consegue fechar o ciclo em que suas ações se concentravam antes de aparecer como Djonga, o MC, de fato. Djonga não é um alterego do Gustavo, não podemos dividir as coisas assim (o que tornaria tudo mais simples). Existe um processo de transição conturbado aqui. Talvez uma transição que, mesmo após o disco lançado, não tenha sido concluída completamente.
Fora as três músicas supracitadas e o interlúdio do FBC, que é genial (!!!), todas as outras faixas giram em torno desse entreciclos que Djonga, ao que me parece, vivia enquanto compunha e produzia seu disco. São músicas com altos e baixos, que vão revezando a forma de tratar a passagem do tempo e tem cortes muito bruscos. O refrão de Geminiano ilustra bem o que é essa transição do Djonga: “Na real, se era pra ser/Ou não/Não quero ela por perto/Só que não quero ela longe, não/Na real, se era pra ser/Sei não/Não quero ela por perto/Difícil é querer ela longe, irmão”.
Não é o efeito do duplo que mora nessas linhas. São manifestações confusas de alguém que sabe que precisa mudar, porém não sabe a medida da mudança que precisa fazer, sacam? Um exemplo claro disso é continuar a analisar como Djonga trata seus relacionamentos com mulheres durante o disco. Algumas faixas agressivas, outras onde ele é mais condescendente. O equilíbrio entre essas tratativas, a maneira certa de abordar sem perder sua identidade; é profunda demais essa parada. E confusa. São manifestações que se ramificam sobre qualquer aspecto que ele abordou no Heresia, do racismo até o rap game.
A segurança de reconhecer ser dono de um potencial enorme, mas não saber até onde esse potencial pode ser destravado e, mais importante, onde esse potencial pode leva-lo. Isso não causa em vocês a sensação de precisar decidir? A necessidade de se posicionar de forma enfática? É dentro de conflitos assim que nascem as outras faixas do disco; como Esquimó, a melhor do disco e uma das melhores músicas do ano de longe.
Quanto às referências, punchlines e o estilo desbocado de rimar, esse é o estilo do cara. Não vou ficar analisando a capa do disco ou as vezes que ele cita Racionais. O Genius está aí exatamente para satisfazer essa ânsia de vocês. Só acrescento uma coisa: todo esse emaranhado de referências cai sobre a própria personalidade do Djonga. Se não fosse por isso, nenhuma delas faria sentido.
Entre a confusão e a conclusão, Heresia é um ótimo disco de estreia. Retrata uma fase muito singular do artista e, principalmente, da pessoa. Revelar o emaranhado dos seus pensamentos é um ato de coragem numa cena que cresce cheia de pessoas que não se colocam em xeque. E como o próprio Djonga diz: “Aquele cheque precisa ser assinado/Quem tá com a moral em xeque, precisa ser perdoado”. Não há mal nenhum em ser quem é, mesmo que você não saiba que caminhos tomar. Grandes jogadas são feitas por grandes jogadores.
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