Metaforicamente, o pombo é um ser tão comumente visto que se torna desimportante, logo imperceptível. Quando não um estorvo, motivo de poluição e desconforto. Normalmente fogem quando alguém invade seu espaço. É medo de ser presa, igual seu primo na semana passada. É a visão assustadora de que o seu lugar é cada vez mais afastado dos espaços que, há cinco minutos atrás, eram presumivelmente seus. Não basta existir para ser pombo. Há de se existir, lógico, mas sob certos aspectos. Pombos são dotados de circunstâncias próprias. Uma semelhança de classe. Tudo muito corriqueiro. Cotidiano.
Na literatura existe o “romance de formação”. Esse tipo de romance ficcional, orquestrado pela escola alemã e lançado por Goethe no cansativo-mas-excelente “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, nada mais é que o desenvolvimento de uma personagem do nascimento/infância até sua maturidade/morte. O foco narrativo principal é a vida do indivíduo da forma mais abrangente possível. Cada aspecto é interessante para a construção da persona e pelo processo narrativo que a perpassa.
É engraçado eu me utilizar de um conceito tão europeu — e de outra manifestação artística — para explicar um disco. Afinal, rap é poesia, não prosa. E, bom, se existe um lugar onde pombos, no figurado ou no literal, não são muito vistos, esse lugar é a Europa.
Em “A rotina do pombo”, disco de Thiago Elniño, existe muita coisa de literário. Do começo ao fim existe a construção de uma história com uma personagem central e o cerne do álbum é, justamente, a vida dessa personagem nos seus mais diferentes aspectos. Se comparado ao que foi dito dois parágrafos acima, eu poderia compara-lo a um romance de formação, mas não é bem assim.
A personagem construída para o disco é uma personalidade genérica e a história narrada é seu cotidiano. Um dia que, basicamente, entra em looping. É difícil desenvolver um romance de formação de uma vida que tem todos os dias repetidos, sempre com o mesmo roteiro. Porém, é bem possível. O ponto é que um romance nessa classificação específica, nunca poderia ser tão genérico. A necessidade do indivíduo se faz presente.
Essa não especificidade do indivíduo-objeto é o primeiro enfrentamento que nos retira da bolha dos julgamentos convencionais. A necessidade de colocar um rosto específico numa obra, de criar uma personagem que carregue todas as dores do mundo, é o principal fator para o despertar da famigerada empatia nos círculos sociais comuns. A personificação das condições gerais num único indivíduo é uma forma de desviar a atenção que deveria ser dada a um problema maior e, sabidamente, beneficia a criação de ícones. Heróis, vilões e mártires. É assim que o mundo gira desde que é mundo, mostram os livros de história.
O hip hop não foge à regra do reducionismo estrutural, personificando causas comuns num único indivíduo. A cultura — ou seus praticantes, como preferir —, tende a criar estereótipos. Por isso mesmo existe uma resistência um tanto maior às diversas demandas que pedem espaço na sociedade, apesar do discurso ativo contra o sistema. Triste, mas é real. Por isso desconfio que a falta de uma identidade específica para o “pombo” tenha dificultado, e muito, a assimilação do intuito do disco pelo público.
Assimilar os vários sentidos que essa representação do pombo assume leva a vários lugares incomuns. Devagar, ao compreender as várias faces e fases do cotidiano do pombo, se faz necessária a articulação de novas maneiras de enxergar o constante estado de invisibilidade retratado nas letras. É um malabarismo com a própria consciência. Nas primeiras audições que fiz, minha percepção foi a de que ao longo do registro, por muitos momentos, Thiago parece estar rimando aos quatro ventos, como que para ninguém em específico.
É sabido que o disco carrega um contexto social intrínseco à própria matriz de pensamento artístico do nosso querido Thiago. Mas não é apenas isso que salta os olhos. Existem elementos que se confundem com a invisibilidade de sua personagem genérica. As rimas a esmo não funcionam como num bom e velho rap de mensagem dos anos 90 atirando para todos os lados possíveis contra o sistema. As denúncias são mais introspectivas. Tudo olha para celeiros maiores de sentimentos. É maior que o palpável, é maior que o que falta na comunidade. São demandas internas que se tornaram monstros reais. Tudo soa muito contemplativo e fugidio. A sensação de deslocamento, da necessidade de sair do lugar para que outro, esse reconhecidamente relevante, ocupe. Contrastando com crises de consciência que lideram o pombo a almejar um novo espaço, uma nova rotina e uma vida menos carregada de mudanças forçadas e forjadas pelo medo, agora natural, de se tornar visível.
Essas fugas para o íntimo do pombo, por toda essa esfera contemplativa e o sentimento de fuga de uma realidade inóspita para muitos que consomem rap nesses tempos de expansão do gênero, me fizeram pensar em toda a base filosófica que temos para recorrer a algumas referências para tentar esmiuçar esse sentimento de vazio e de insegurança que boa parte do disco passa superficialmente. Mas aí veio a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e eu esbarrei com o Thiago nas esquinas de Paraty algumas vezes. Trocamos algumas ideias e assisti seu show no sábado.
Eu simplesmente joguei fora tudo o que havia escrito. Vou dizer o porquê.
Enquanto eu assistia à apresentação, fiquei reparando em como o público tratava a mensagem que acabava de receber. Não é comum ter rap em Paraty. Ainda mais na FLIP, um evento que normalmente leva um público de maior poder aquisitivo, que acredita acumular uma carga de conhecimento maior devido a títulos acadêmicos e acesso à “alta cultura”. O nível de erudição dessa parcela permite que o rap seja tocado no seu meio, mas não é capaz de abrir os olhos para as distâncias que a cultura hip hop, como fundamento, procura diminuir. Na cabeça deles ainda impera a ideia de um rap que luta por uma melhoria estrutural física, como se o corpo social que exige as mudanças materializasse todo o objeto de luta. É como reduzir a discussão sobre apropriação cultural a questão do turbante, apenas. Toda uma luta reduzida a um objeto. Ali eu abri meus olhos e enxerguei o que estava deixando passar batido no disco.
Não invalido a filosofia ocidental na hora de tentar trazer referências e montar uma ideia do disco. Existe um conjunto de ideias excelentes a serem exploradas e estudadas. É válido que todos tenham acesso as mais diversas formas do pensar. Mas essa escola filosófica europeia não me parece muito prática. Usa-la como referência para explicar a visão de mundo que temos aqui é menos prático ainda. Pensando nisso, consegui preencher as lacunas e olhar diretamente para o pombo que Thiago descreveu a rotina. Ele está fora do nosso referencial, inclusive acadêmico. E isso que torna o trabalho do disco tão minucioso e bem executado.
A retratação por estar abaixo do radar acadêmico é necessária, mas não se trata apenas da reelaboração do cânone e a inclusão de obras e pesquisas e artigos, compondo um quadro mais diversificado. Trata-se de analisar profundamente o estabelecido e reclassifica-lo de acordo com a pluralidade que existe no país. Não adianta fazer um mea culpa e abrir um espaço na estante, se o pensamento em vigor ainda for excludente, sacam? É uma análise profunda, muito maior que, por exemplo, a superficialidade de uma primeira tentativa de explicar esse disco por meio de artifícios já conhecidos por mim. Meu alcance e importância, vejo agora, são mínimos para a continuidade responsável da cultura, já que perpetuo uma linha de pensamento que se sobrepõe a outras pela força histórica que exerce ao excluir outros pilares culturais.
Os vazios de antes nas letras de Thiago, agora me levam até uma multidão que também não estava presente no seu show. Escrever músicas para pombos é completamente diferente que escrever músicas sobre pombos. A liberdade e a facilidade de estabelecer um diálogo direto, sem ter que fazer malabarismos para mastigar ou deixar o mais aparente possível o que é reivindicado. Isso é uma dádiva. Tendo presenciado o show e a imersão de Thiago no seu próprio “romance de formação”, é perceptível que, apesar de todo o retrato duro da rotina, da identificação com a personagem genérica e da dificuldade que é transpor as barreiras da invisibilidade imposta, há esperança de que o quadro mude. Que seja devagar, mas que mude. E que essa mudança é horizontal, de iguais para iguais.
“A rotina do pombo” é um disco complexo, com camadas sutis e bastante cru no que tange a carga de sentimento colocada em cada linha. Por mais elucubrações que eu pudesse fazer aqui para explicar todo o contexto do disco, continuaria sendo uma resenha superficial. Por isso prefiro continuar aprendendo e descobrindo novas formas de ver o mundo, estudando outras matrizes culturais mais a fundo. Posso adiantar que, por trás disso tudo, existem formas belíssimas e mais honestas de entender a vida, mas não me sinto capaz de escrever sobre ainda. Então, até eu me entender nesse processo de colocar o aprendizado na vivência, essas divagações ficam para outros textos.
Por enquanto, ouçam o disco! São críticas sociais, referências, uma maneira bem menos eurocêntrica de ver o mundo, uma construção lírica pesadíssima e, principalmente, uma capacidade de traduzir sentimentos fora do comum. Pacote completo. Mas nunca se esqueçam que o mais importante para todo esse processo é, justamente, chegar até os pombos e observar sua rotina. É só ali que entenderemos a importância de “A rotina do pombo” e em como ele quebra paradigmas e rompe silêncios. É engraçado como o “pombo” descrito por Thiago Elniño pode ser tão real e abstrato, sem forçar a barra para se mostrar uma obra de arte complexa e intraduzível, hermética. É disso que a arte é feita. Um disco literário na raiz. Hip hop na raiz. Fascinante.
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