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Coisas que acontecem após uma confusão com o título do disco do Síntese

Toda vez que toca o Trilha para o desencanto da ilusão vol. 1 – Amem, o ambiente entra num processo espasmódico, sendo dilatado e contraído ininterruptamente, diminuindo algumas distâncias e sensações não habituais — e que deveriam ser. Entre contrações e dilatações do espaço-tempo, permanece a sensação de realidade alterada ou, simplesmente, vista por lentes macro, daquelas que alcançam a tudo e a todos na centelha da existência. Por essas distorções ou por essa realidade adaptada ou pela minha natural capacidade de confundir nomes/títulos, eu sempre atribuí ao disco o título de Trilha para o desencanto da ilusão vol. 1 – Amém. Não há nada de absurdo nesse pequeno engano e, sob certos aspectos, ele torna-se justificável — senão autoexplicativo — em se tratando do Neto e sua espiritualidade, e do Síntese como organismo.

Em Vive aqui, por exemplo, Neto propaga os seguintes versos:

“Ao guardar a luz que preservei ao vagar no escuro

Os lugares têm a ver com o estado em que a mente vê

E que a força que se põe, classificar pra compreender

Examine: crime é quando me define, ao definir você me nega

Ou melhor, ‘cê’ me pega pra você

Não, só deixe ser, vive e deixe viver

E se deixe morrer, é o que é preciso para renascer

Não se trair é ter vontade de se erguer, me ergui

Cuidado com o que quer sentir, tudo aqui é um eterno eco

Nessa vida que é troca, seco quem faz pouco

Oco é quem não sai da toca e morre sem amar

Só depois de oferecer e dar sem nada almejar que recebi

Só depois de te enxergar foi que me vi”

 

Simples, não? Sem referências, punchlines e multissilábicas. Mas é a partir desse trecho que esse texto se oferece e que minha confusão entre Amem e Amém é justificada.

Amar talvez seja a única maneira de demonstrar o que é ser livre em toda a sua amplitude e exagero. Nos nossos tempos, funestos, é subversão. A capacidade de sempre arbitrar pelo caminho do amor é o que necessariamente separa o homem de ser totalmente divino. Vivemos de lapsos. Dentro de uma concepção muito particular, injetar amor no próximo, sem restrições ou condições, é tornar-se divino. O grande problema do homem é manter-se regularmente num patamar espiritual elevado a esse ponto. O famigerado livre arbítrio — de encontro com a ordenação dos regimentos morais da sociedade que flutua por várias tendências, agora mais curtas e intensas — tende mais a confundir que elucidar escolhas; e, quase sempre, o caminho do amor é preterido por alternativas que não se sustentam por si só, porém, estas se mantêm como opções frescas e de eficácia imediata. É um poço em que se cai pouco a pouco, o que tira a sensação de vertigem ao se olhar para o fundo e anestesia as sucessivas quedas.

Talvez seja por isso que figuras onipotentes e onipresentes se assemelham tanto a um ideal de humano e, assim, sejam tão necessárias quando a pauta é amor, liberdade e as matrizes existenciais do espírito, sempre enquadrados em doutrinas religiosas como absolutos, concentradores de todo o poder. O homem transcende a partir do seu semelhante; e estagna ao não conseguir alcançá-lo. A evolução só é possível através de trocas sinceras. Seguindo essa linha de raciocínio, a saudação amém não está tão longe do amem, título do disco. Não pelo seu sentido mais reconhecido e aceito na literatura religiosa: “que assim seja”. Amém é uma palavra coberta de mistérios, significados e traduções. A reivindicação da origem vem de diversas culturas e mexe, não obstante, com a fé e todo o aparato dogmático conhecido. A trilha para o desencanto da ilusão pode assumir várias formas, então. Da mesma forma que amém as assume.

Apesar da origem incerta e da adoção de seu significado e uso como saudação respeitosa e fatalista, a palavra amém remonta a histórias etimológicas bastante interessantes. Uma das origens, destoando do clássico ensinado nas escolas e outros, seria uma derivação de Amon, que significa “o oculto”, um deus egípcio (daí deriva para Amon Rá, mas isso são outros quinhentos); ou seja, amém poderia ser um verbete de origem pagã — como quase tudo o que conhecemos. Porém, a significação adotada para esse texto em específico é mais ortodoxa; a palavra é proveniente do hebraico, originada a partir de um acrônimo: E.M.N. O acrônimo significa El Melech Neeman, que em linhas gerais é a junção de três palavras distintas: Deus, rei e fiel. Numa tradução livre, seria algo como “Deus é um rei confiável”.

Voltando para o motivo do texto, o Síntese, ao longo dos anos, vem apresentando materiais e performances cada vez mais envolventes no que tange à fixação do público em torno de uma mensagem central, principalmente à elevação de espírito, na crença de que o amor e, consequentemente, a liberdade podem mudar as coisas por aqui e, não menos importante, na força de um Deus confiável no qual depositar a esperança e, principalmente, os esforços por um mundo mais pleno e justo.

Não é incomum ouvir Neto se referir a Deus como Jah, ao mundo como a Babilônia e atribuir elementos do reggae, ragga, ska e afins à construção do repertório do Síntese. Flows, muitas linhas de baixo, ideias, (des)construções e (de)composições que explicitam o mergulho na fonte jamaicana, o que se tornou uma marca registrada do organismo vivo chamado Síntese, bem maior que apenas na esfera das referências musicais. Os ritmos jamaicanos são recheados de elementos incríveis e fizeram o imaginário do mundo inteiro, recheando os ouvidos alheios de clássicos e mais clássicos. A diversidade cultural jamaicana, num geral, é belíssima — inclusive, leiam A história dos sete assassinatos, de Marlon James. É grande, mas vale o esforço. Livro excelente e que ajuda a entender um pouco da Jamaica como unidade cultural. Mas nada disso vale se o contexto de uma cultura tão prolífica e espiritualizada não for entendido. Principalmente um movimento que soube perpetuar e abolir fronteiras defendendo um ideal através da sensibilidade da sua arte profética. Afinal, para além do “paz e amor” que tanto falam, o movimento Rastafári, tratado como religião ou modo de vida, nasce e se mantém à base de verdades que o mundo não quer ouvir, analisadas ou antevistas pelos seus mensageiros e divulgadas para o mundo através da arte. A conexão entre o Rastafári e o Síntese, pela atração exercida pelo Neto, rompe a barreira da arte e torna-se a perpetuação da espiritualidade na sua origem.

Quando Marcus Garvey cravou a frase “Olhem para a África, onde um rei negro vai ser coroado, anunciando que o dia da libertação está próximo”, ninguém poderia imaginar o quão profético Garvey poderia ser. Tafari Makonnen, também conhecido como Ras Tafari (Ras = cabeça, príncipe; Tafari = indomável, respeitado) assumiu o poder como regente do trono etíope em 1916 e, em 1930, foi a imperador absoluto. De uma linhagem que remete ao Rei Salomão (referências) e à Rainha de Sabá, ao se tornar imperador da Etiópia, Tafari foi o primeiro líder a receber o nome Haile Selassie (o poder da divina trindade). Selassie seria, então, a encarnação de Deus, o rei confiável, para os Rastafári. O ideal de pan-africanismo, de retorno à terra prometida — agora a Etiópia — e de que a justiça teria finalmente chegado ao povo escravizado, sustentaram uma das expressões de maior fé, representatividade artística e poder espiritual do século XX.

Talvez, boa parte da herança de Garvey como ativista esteja contida nesse olhar profético sobre a coroação de Haile Selassie e a subsequente criação da doutrina Rastafári. Apenas estejam cientes que Marcus Garvey é uma das pedras filosofais do ativismo negro e constituiu as bases de, basicamente, todos os pensadores e ativistas modernos. Porém, é impossível não olhar para o surgimento do Rastafári com olhares fantásticos, da mesma forma que não há maneira de ignorar a proporção que tomou a “profecia” de Garvey. Mesmo o escritor mais criativo (até mesmo porque escritores europeus e norte-americanos nunca deram a mínima para a África e Américas do Sul e Central, seus dissidentes e imigrantes, salvo raríssimas exceções) demoraria a conceber a ideia de um movimento ativo, altamente subversivo e proporcionalmente religioso, que tomasse um imperador etíope como Deus encarnado e criasse um modo de vida, maior, inclusive, que uma religião, a partir de interpretações bíblicas e mundanas que se interpolaram numa sucessão improvável de fatos.

O Rastafári nasceu de uma profecia, sendo os transmissores da sua mensagem, profetas; e, mesmo que de forma indireta, o contato de Neto com as bases da cultura o movem na direção de uma responsabilidade maior que a de um veículo de comunicação, um artista tão somente. Neto se coloca, tanto quanto Garvey ou Marley, na função de um agente de mudança do seu ambiente. O reggae, profético e poético à sua maneira, pegou o mundo pela orelha, literalmente, e foi o principal disseminador dos princípios Rastafári em escala global. Porém, como qualquer arte, inclusive o rap, o gênero não ficou resguardado num núcleo próprio e suas respectivas doutrinas religiosas. Jimmy Cliff, por exemplo, apesar de ser um dos grandes ícones do reggae, é muçulmano. Coisas da vida. Isso nunca o impediu de levar palavras que abrissem os olhos das pessoas e chamasse a atenção para o movimento jamaicano e para a luta por igualdade e justiça entre os povos.

No fim, tudo é música. De Rolling Stones à Cláudia Leitte, todos sofrem influência do ritmo. Apesar do mercado voraz, o mundo artístico ainda trata o reggae, principalmente, com o devido respeito. Os ritmos jamaicanos souberam se adaptar para espalhar sua principal mensagem como ritmo e cultura com valores imbuídos de uma espiritualidade elevada. É muito difícil que o mercado não esvazie o sentido de qualquer ritmo musical para fazer um produto palatável, a fim de abocanhar grupos cada vez maiores de consumo. Porém, o reggae ainda manteve sua cadência e sentido preservados. Explorados, mas preservados. O reggae se comportou como água através dos tempos, e ser água não é nada fácil.

Seja água é um discurso de Bruce Lee bastante famoso e citado por Neto logo nas primeiras faixas do disco. O discurso é de fácil acesso e encontra-se traduzido e legendado por aí. Resumindo: trata-se da capacidade de adaptar-se às condições, não importando quais sejam, como a água é capaz de tomar a forma do recipiente em que é colocada. Isso significa que não há tempo hábil para que se fique à espera da condição perfeita; ou o indivíduo se adapta, ou o indivíduo é apagado pelas condições, que o engolem sem dó.

O grande problema de ser altamente adaptável é o vínculo estreito da palavra com a falta de raízes e a ganância pelo bônus concedido aos vitoriosos. Adaptação e ambição tornaram-se ações de causa e efeito. Você se adapta para a vitória, nunca para ser ou fazer o melhor para a situação em questão. Ninguém deseja a sensação de mal-estar que a derrota causa, muito menos ter todo o trabalho de adaptar-se para manter-se estagnado, enxergando uma manutenção de condição como perda de tempo. Talvez seja por isso que quando a sequência de Babilônia parte 2, Desconstrução e Gotas de veneno começa a tocar, há uma espécie de pausa nos espasmos que o ambiente costuma ter. As contrações diminuem, o espaço-tempo retoma uma certa normalidade, mais vagarosa, como num organismo digerindo uma refeição que não caiu muito bem. Ninguém gosta de engolir a derrota, quanto mais digeri-la. Essa parte baixa do disco é exatamente o que ninguém quer ver, mas os mensageiros do Síntese precisavam passar. É a parte da trilha que remete à continuidade de Seja água.

Antes de perder ou ganhar, é necessário saber morrer, sacam? Isso está escrito no trecho de Vive aqui que está no começo do texto e também está no Seja água de Bruce Lee. Deve-se aceitar e reconhecer que é possível não estar aqui amanhã e que vitórias passam a não valer absolutamente nada. Da mesma forma, as derrotas já não exercerão peso algum. Acabou! E a ganância por resultados, posse e matéria já não adiantam nada mais. Quando o ciclo da vida se fecha, tudo vira nada. Ou como diria Rita Lee: tudo vira bosta.

Aprender a morrer é, também, aprender a adaptar-se à vida como ela é e estar livre de convicções, sempre tendo a renovação e evolução como meta. A vida é uma dádiva maculada por uma série de conceitos torpes, então toda vez que um conceito nocivo é retirado do círculo de hábitos de alguém, um novo indivíduo nasce. São as pequenas mudanças do cotidiano que deveriam ser valorizadas para que não fossem interrompidas, mas que, sendo interpretadas como perdas, acabam por serem tratadas como derrotas. A necessidade do acúmulo de virtudes, sentimentos e bens materiais, elimina o senso crítico e a noção do que é útil e, primordialmente, bom. A maior derrota que a Babilônia nos impõe é acumularmos tanta coisa a ponto de sempre estarmos confusos sobre o que deve ser utilizado. Por isso é necessário aprender a perder, sentir a derrota. Seja água na Babilônia, já que no fogo-contra-fogo a desvantagem é enorme. E assim, voltamos ao começo do texto. O homem é incapaz de sempre arbitrar pelo caminho do amor, é confuso, precipitado e insuficiente na sua espiritualidade. Por isso deuses tão humanos se encontram tão acima dos homens. Ciclos que se repetem continuamente. E para cada um que consegue quebrar o ciclo, é uma vitória para a humanidade. Giramundo.

Reparem que, estruturalmente, o Trilha para o desencanto da ilusão vol. 1 – Amem é um disco cíclico, mas não estático num mesmo ciclo. Após ouvir Giramundo, fatalmente Meu caminho tomará outra proporção e a sensação do recomeço no desconhecido é inevitável. É um estado constante de reinvenção e aprendizado dentro de uma estrutura montada para servir de guia para o ouvinte e de caminho para quem o criou (o contrário também é aplicável). Por isso é uma trilha. Por isso ela guia ao desencanto da ilusão. Os espasmos no espaço-tempo são o enfrentamento direto às condições da realidade. Sendo assim, prefiro comentar sobre meus lapsos com o nome do disco, do que necessariamente dissecá-lo. Como explicar racionalmente ou maquinalmente uma demonstração de amor, de liberdade e de arte sem ser maniqueísta? Sem manipular interesses? Ainda não faço ideia. O significado da obra é singelo e puro, e é nisso que credito o processo de elaboração esse texto. Acredito na arte como forma de expressar amor e, consequentemente, liberdade. Em tempos tão confusos, deixar um conceito tão livre é, no mínimo, perigoso, independente da crença ou da diferença ideológica. Por isso tanto faz que seja Amem ou Amém. No fim das contas, cada um é livre e é seu próprio rei confiável. E que assim seja. Ou amém.

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