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Flora Matos e a arte de contar boas histórias

Nem toda narrativa tem como função contar uma boa história, mas qualquer um que queira — e consiga — contar uma boa história tem seus pontinhos a mais no plus/minus da cotação da bolsa de escritores. Não importa a modalidade, estilo ou esfera — chame como quiser — da arte. Recentemente saiu uma breve crônica para o site do coletivo AUR, sobre a música Hurricane, do Bob Dylan, um dos maiores storytellings da história da música e fundamental para a formação cultural deste que vos fala. Boas histórias são capazes de influenciar e modificar pessoas, senão um universo inteiro, apenas pelo fato de serem boas histórias. Não é necessário que esta transpareça algo que vá além do próprio universo para que a mensagem toque e cause empatia por parte de quem lê, ou, no nosso caso, ouça. A boa história está ali. É o suficiente.

Mas contar uma boa história não é uma questão só de talento. O talento é inerente, óbvio, à função de escrever. Contudo, boas histórias são advindas de um processo. Há de se pensar, sempre, no processo. Guardem essa fórmula: talento + processo. Não é para o texto, é para a vida. Acaso queiram escrever boas histórias, claro, o que não é uma obrigação.

Colocar o processo em palavras, não importando a forma, e torná-lo público através da arte depende de um processo de desprendimento e/ou superação fantásticos. Algo que vai para uma esfera ainda pouco explorada, em teoria, da arte: a coragem — colocada como valor subjetivo, tendo em conta a obrigatoriedade de um motivo para que exista arte. Remetendo a textos lançados por aqui, a arte é um processo de empoderamento por si só. Indo além, pode-se pegar o caso de Eletrocardiograma, disco de Flora Matos, que deixa nas entrelinhas — algo confirmado em entrevistas posteriores — traços de um processo que não foi apenas trabalhado como conceito, mas que foi vivido à flor da pele.

Após uma década de espera ansiosa pelos fãs, Flora lançou seu álbum num ano recheado por discos conceituais e, dentro de parâmetros atuais e conformidade crítica, técnicos. Em 2017 a roupagem dada ao próprio hip hop tem tomado formas estéticas diferentes, proveniente da necessidade e urgência de representatividade da diversidade que o público alcança e que, como cultura, o hip hop é capaz de se aproximar, representar e dar voz. A pluralidade de vozes e forças que se somam ainda não é a desejada, mas é interessante perceber como peças características de arte foram lançadas, jogando luz, através de trabalhos concretos, a questões um tanto omitidas por “forças maiores” que pouco a pouco vão sendo abaladas, apesar da luta ainda ser bastante árdua.

Numa breve reflexão, talvez seja por isso que as listas de melhores trabalhos do ano sejam tão diferentes entre os sites que se propõe a fazê-las, apesar de ainda estarem viciadas por certos padrões (até quando?).

Enfim…

Auto-exposição e rap nunca estiveram tão próximos quanto agora, mas, tendo passado por um processo intenso de ressignificação, a expressão perdeu a margem e o controle do íntimo. Com os limites entre público e privado tão tênues, senão abolidos, a história de amor desastrosa e superação narrada no decorrer do disco não está longe de uma história que você tenha passado ou tenha escutado de alguém próximo.  Esse aspecto torna ainda mais estranho que, no meio desse arrebatamento por conceito e representatividade, Flora tenha se importado mais em contar uma boa história.

Muitos discos giraram em torno de personagens e narrativas de mundo aberto, mas, repito, na maioria dos casos foram cenários construídos com o intuito de servir como pano de fundo para explicitar contextos específicos, para exercer função identitária. Por isso colocar a construção do enredo — ou se preocupar em contar uma boa história — como algo maior que o próprio discurso objetivo é retroagir uns bons anos no rap, para uma época em que boas histórias ofereciam algo além do lúdico, do imagético e do técnico.

Normalmente, Flora já se mostrava despreocupada com fórmulas específicas de escrita para enaltecer o processo técnico, sempre buscando encaixes próprios que enalteçam sua condição momentânea, recriando contextos e tentando elevar a mensagem para algo que, além de causar identificação, entretenha. O disco, portanto, alcança seu ápice e segue uma via de mão-dupla para Flora, sendo válvula de escape para os sentimentos causados pelo processo e forma de enfrentamento direto, refletindo na própria experiência do ouvinte.

Fugindo das referências, metáforas, trocadilhos e demais técnicas utilizadas atualmente em conjuntos de linhas curtas, sendo constantemente repetidas dentro das faixas, Flora decidiu exercer a paciência e confiar no seu processo narrativo recriando imagens através das suas próprias palavras, tornando o Eletrocardiograma um grande exercício de storytelling. São doze faixas que seguem uma sequência lógica, como capítulos de um livro. A imersão na história serve como fuga, tanto a de Flora, que converte seu processo em arte, quanto à do ouvinte, que tem em mãos doze músicas (todas são hits) que funcionam como entretenimento e narram uma boa história.

O limiar entre ser abraçada ou ser completamente ignorada pelo público ao expor sua história passa exatamente pela forma como Flora decide transmitir seu processo às pessoas. Ao decidir contar uma história própria, encaixada da forma que foi, o ouvinte sente-se obrigado a prestar atenção, a tentar montar o quebra-cabeça dos sentimentos que vão sendo jogados faixa a faixa e a criar essa vontade de ajudar, nem que seja ouvindo, a desembolar os nós que vão ficando pelo caminho dessa relação que se mostra, finalmente, abusiva.

O ritmo vagaroso dos fatos não diminui a importância negativa de um relacionamento abusivo e seus vários tentáculos, que agarraram Flora nesse processo. É importante deixar claro que, se não fosse por uma relação abusiva, Eletrocardiograma não existiria e hits como Bora Dançar e Sonhos Gangsta (minhas preferidas do disco) não estariam na rua. O disco funciona, sim, como denúncia e como insurgência. O final do processo, que reflete a emancipação de Flora para o que ela é e, principalmente, para o que ela representa no atual momento, é um grito de liberdade maquiado por uma história bem contada que se encontra disposto para ouvidos pacientes e que estejam abertos a sentir.

O poder de transmitir uma mensagem seja ela qual for através de uma via que exige imersão profunda para que o contexto faça sentido, é a forma antiga de fazer rap, um resgate dos clássicos do fim dos anos 80 e, principalmente, começo dos anos 90. As letras que recriam imagens e contextos nos anos 90, com o storytelling contínuo e a forma em que ela se coloca sob a perspectiva de outros pontos de vista — a primeira faixa do disco, Perdendo o Juízo, funciona como um prefácio para o seu processo, com o homem se declarando e dando início ao relacionamento e a sucessão dos fatos que nos levam até Preta de Quebrada, que funciona como epílogo, dando contornos finais e emancipados à Flora de Eletrocardiograma —, estão aqui em nova roupagem, encaixadas de uma maneira moderna, dentro de motivos e contextos que hoje fazem sentido dentro do rap — mais que antigamente, pelo menos. Flora soube, portanto, aproveitar do momento para produzir, literalmente, seu disco.

O disco, ainda recente, não dá dimensão do seu alcance e influência completos. Apesar de simples, o contínuo exercício de audição cria contextos e destrava compartimentos onde a sensibilidade era incapaz de alcançar anteriormente num público que, nos últimos anos, desaprendeu a ouvir histórias. Mas é perceptível a identificação, busca e apoio mútuos como reações imediatas ao lançamento. Ver essa reação nas redes causa felicidade e renova esperanças para 2018. É incrível ver que o público assimila e apoia boas histórias contadas. Mais incrível ainda, é ver artistas do quilate da Flora Matos terem a coragem de lançar um trabalho tão aguardado pelo público contrariando muitas das tendências atuais, optando e apostando na paciência de uma cena efervescente.

A esse tipo de trabalho, por mais que estejamos acostumados a classificar, qualificar e colocar inúmeros adjetivos, só devemos agradecer por seu lançamento em momento oportuno, se é que existe momento oportuno. Eletrocardiograma é um grande disco baseado numa grande história capaz de sensibilizar e abrir um diálogo para além do técnico, congestionando sensações e as lições que podemos tirar disso tudo. Obrigado, Flora. Eletrocardiograma é o bicho. Avisa quando fizer show no RJ que eu quero ir. É nóis.

Isso se estende ao que eu disse no texto do Froid e ao texto da crítica brilhante, Camila von Holdefer, lançado hoje no seu site.

E é com Flora Matos que encerro meu 2017 aqui no Canal RAPRJ. Agradeço a todos por terem acompanhado, lido e apoiado a iniciativa. 2018 já vai começar no gás, podem cobrar. Coisa boa está vindo aí.

Mas, por enquanto, é hora de comemorar os dias de folga, relaxar e refletir sobre esse ano à prova de balas. Feliz 2018, meu povo. Até já.

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