*Texto por Amanda Magnino
O Triângulo Mineiro é bem diferente do resto de Minas Gerais, é cerrado, uma fusão cultural de Minas e Goiás. Uberlândia, a “capital” do Triângulo, assim como suas cidades vizinhas é extremamente coronelista, conservadora, elitista, com as mesmas famílias governando o Estado e a economia há décadas. Fazer rap nessa região é atacar diretamente uma cultura de elite. Quando entende-se essas questões, fica mais fácil compreender a necessidade do rap dessa região ser valorizado: existe uma mensagem contida ali que precisa ser escutada.
O Roça Records, selo que surgiu da junção de pessoas ativas dentro no hip-hop da região, veio com a proposta de organizar e propagar o “flow da roça”. A primeira Cypher Roça Records veio pra mostrar pro resto do Brasil como funciona a realidade e o hip-hop em uma região que merece ser observada e respeitada.
O som começa com Vaine, jogando uma dose de realismo cru, chutando a porta com versos que quebram qualquer conceito fantasioso sobre o hip-hop e mostram que, na tal da “roça”, a realidade é diferente. Vale muito a pena prestar atenção na parte lírica do Vaine, que é o ponto forte do MC que consegue traduzir o que precisa ser falado de forma didática e poética ao mesmo tempo.
Na sequência temos TiagoBits, que também assina a gravação e mixagem da cypher, mostra as dificuldades de viver de rap em terras conservadoras. Tiago também tem o estúdio O Laboratório, que abraça os artistas independentes do Triângulo Mineiro. Falar sobre a coragem de dar a cara a tapa e viver de arte numa sociedade de mentalidade pequena é necessário.
O Drew, integrante do Udischool, é um, momento à parte no meio de tudo. Jogada inteligente colocá-lo bem no meio do som. Com muito sarcasmo, o “Escurinatti” ataca com ironia o racismo, o sistema, a cena e até o próprio rap. Com punchlines como “querem ser raíz de um bagulho que nem plantaram”, Drew traz quem escuta o som para a reflexão e já prepara o terreno para o que vem na sequência.
Madruga, também do Udiscool, chega com os versos que se destacam pela composição lírica e um flow absurdo. Repleto de referências que vão de Michael Jordan a Basquiat, Madruga consegue encher a letra de referências artísticas que são coerentes com a própria cultura hip-hop ou que não soam estranhas aos ouvidos da periferia. O ponto alto é a mensagem sobre a descentralização geográfica do rap, sobre como é difícil para quem não está no trajeto Rio/SP ter alguma voz. Esse tema já entrou em ascensão no hip-hop com outros Mc’s, mas ainda existem muitas regiões abafadas na cena e essa é uma das mensagens centrais da cypher, que foi colocada muito bem, com rima e métrica impecáveis:
“Igual Amapá,
sabem da existência mas nunca vão lá,
sabem da sofrência mas nunca vão lá,
acumulam dados mas nunca vão lá,
mídia acha bom e sempre estão lá,
pra um bom entendedor só meia pa ba,
linguagem de rua ninguém vai ensinar”
E destaque também para o verso:
“Alguns quebram leis, outros quebram taças. Quebramos barreiras e erguemos taças“.
Dunock (Udischool), segue falando firmemente sobre questões raciais e sobre a realidade da periferia do Triângulo Mineiro em suas peculiaridades.
“É que os branco quer falar do que eu vivo, é que os branco não sabe o que o nêgo trilhou e ainda ostenta com o que o negro criou” (Dunock – Udischool).
A cypher finaliza com LKS, que também foi o responsável pelo beat, um trap pesado que encaixa perfeitamente na lírica. LKS fecha com chave de ouro e um soco na boca. Ele fala com maestria sobre a vivência da periferia na região, faz menção ao prefeito de Uberlândia que vem da elite branca que comanda (e oprime) a cidade e sintetiza tudo que foi passado por todos na música.
A primeira cypher do Roça Records é coroa para concretizar o trabalho feito por anos na região do Triângulo Mineiro e também é chave para abrir, com classe, as portas que não precisavam de licença para serem escancaradas.
Através desse som, o Brasil conhece a realidade de uma região cheia de peculiaridades e esquecida por muitos, na voz de MC’s necessários não só no rap como na música, que carregam consigo o que o hip-hop precisa: mensagem, flow e fúria.
Confira:
FICHA TÉCNICA Cypher Roça Records 2018
MC’s:
Vaine
TiagoBits
Drew
Madruga
Dunock
LKS
Produção/Beat: LKS
Gravação: Estúdio O laboratório
Direção do vídeo: Jozé Vitor Araújo / Unknowndigitalfeelings Films