O surrealismo pode ajudar a explicar alguma coisa sobre a realidade e/ou o mundo tal qual a perspectiva individual. Como base, é evidente que, de imediato, a arte surrealista rompe com os padrões estéticos conhecidos — expressão cult padrão — por todos e acaba por causar desconforto e estranheza ao observador, senão mal-estar. Mas repare que o primeiro choque retira a necessidade primária de entendimento completo sobre a obra, porque a primeira função do indivíduo ao buscar arte é, simplesmente, encontrar algo que se enquadre ao seu gosto ou conceito de beleza. A formação de juízo sobre a arte é — ou deveria ser —, portanto, de cunho pessoal. Ao encontrar qualquer conforto estético, a predominância da razão sobre a arte arrefece e, em muitos casos, perde o sentido.
Antes de pensar em manifestar qualquer coisa acerca de surrealismo aqui, o intuito era assistir os filmes dirigidos por Karim Aïnouz e tentar explicar o porquê Don L quis prestar essa homenagem ou articular essa referência para dentro da sua trilogia autobiográfica — que só teve seu último volume lançado, o Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3 — porém, como sempre, as coisas fugiram do planejado.
Como ideia, o surrealismo não é tão simples assim. Na busca por romper tais padrões e dar voz a uma cena marginal à frente do seu tempo, o ideal surrealista baseia-se numa relação de não pertencimento do indivíduo aos protocolos de tempo e espaço que são tomados como realidade. Qualquer obra surrealista não se interessa, em absoluto, por nada que não pertença a uma percepção individual do tempo e espaço os quais o indivíduo se vê inserido, senão dono, e transformá-los para um bem coletivo, amplo e verdadeiramente livre. Portanto, a realidade comum, àquela a qual nos referimos como “Matrix” ou “sistema”, para o movimento surrealista não passa de um grande vazio.
Contudo, o surrealismo não foi o pioneiro ao explorar o vazio existencial. Muitos pensadores já colocavam para fora a angústia e as imagens “surreais” que criavam antes do movimento surrealista tomar forma, mas, talvez, o surrealismo tenha sido o movimento que conseguiu transpor barreiras maiores da identificação do indivíduo com o vazio, do não pertencimento e das realidades adaptadas, tecendo realidades paralelas transmitidas através de peças de arte singulares, senão bizarras.
A ideia de deslocamento da realidade ou de não pertencimento é uma nuance básica para aprofundar discussões sobre formação da arte e seus produtos. No caso desse texto, a música de Don L.
Ao assistir O Céu de Suely, filme dirigido por Aïnouz, fica evidente que a linguagem pouco verbal, que perpassa a aridez do sertão nordestino e do abandono de Suely à sua própria sorte, tangencia a incontrolável vontade da mesma em voltar, a qualquer custo, para o centro urbano de onde veio. Além de não mais pertencer ao sertão e seus costumes, sentindo-se incompreendida ao buscar novamente o controle da sua vida e o caminho de volta para a urbe, ela simplesmente se despe do direito de querer se fazer entender, exilada nos próprios motivos, que ficam a cargo dos vazios deixados por Suely e a força de compreensão exercida pelos personagens que a rodeiam — e, obviamente, pelo público.
Don L, em paralelo, oferece resistência ao vazio estrutural que é o funcionamento do mercado fonográfico como rapper para obter sucesso e reconhecimento. Se o mercado da música não o aceita como padrão, sua negação exerce caráter retroativo. Com tentativas frustradas de inserção no mesmo mercado que é objeto de seus ataques, Don L percebeu que não teria vida fácil e Eu Não Te Amo, como crítica estrutural, deixa bem claro a direção da linha argumentativa que o artista articula, abrindo o disco com uma das melhores músicas do ano. Não obstante, o rapper continua tecendo, na sua cadeia lógica durante o disco, as ideias de justiça que o levaram à decepção e, posteriormente, a um profundo vazio. Exilado, agora, na sua própria ideia de fazer música e, naturalmente, resistente a fazer algo que não seja de sua propriedade, Don L coexiste numa espécie de limbo entre o reconhecimento como excelente rapper e um fracasso comercial quase incompreensível. Um exílio bem observado por Edward Said no trecho:
“Por mais que tenham êxito, os exilados são sempre excêntricos que sentem sua diferença (ao mesmo tempo que, com frequência, a exploram) como um tipo de orfandade. Aqueles que realmente não têm um lar consideram uma afetação, uma exibição de modismo o hábito de ver a alienação em tudo o que é moderno. Agarrando-se à diferença como a uma arma a ser usada com vontade empedernida, o exilado insiste ciosamente em seu direito de se recusar a pertencer a outro lugar.”
Ou, como foi bem explicado por Don L na música Fazia Sentido:
“Cê tem certeza que fala minha língua?
Ler o título não é ler o livro
Ler o livro não é entender o livro
Depois que cê entender o livro
Cê pode colar pra falar que cê num curtiu o título
Certo?”
A manifestação cônscia de que sua percepção da realidade, que coincide com o vazio que carrega acerca da indústria musical, é plena, enche o próprio álbum de sentido e o coloca em posição de conseguir deliberar sobre as formulações que estabeleceu como verdades através da sua arte de maneira integral. A mesma aridez encontrada em O Céu de Suely se manifesta em Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3 quando Don L consegue, finalmente, expor sua realidade através da sua música.
Mas no que realmente agrega, como aprofundamento da obra, falar sobre o surrealismo que pode ter influenciado parcialmente Aïnouz que influenciou Don L?
Roteiro pra Aïnouz Vol. 03 é em boa parte, senão todo ele, um atestado lírico do quão doente o mercado — ainda pequeno se comparado a outros nichos musicais — do rap nacional está e seus efeitos colaterais. A experiência pessoal de Don L, sua entrega ao modus operandi da arte em que acredita e suas experimentações na forma de expressar essa vivência são o combustível para que a mensagem seja propagada e vista por um público que não sente na pele a realidade do que é “viver de rap” diretamente, pois estão inseridos num mercado de consumo instantâneo e, por isso mesmo, raso. Portanto, as faixas são grandes figuras de linguagem para transmitir uma noção da realidade que Don L enxerga e vive, mas que parece muito distante da praticada por aqui por milhares e milhares de predicados que caracterizam o espaço e o tempo no qual é compartilhada a realidade de mercado e seus constantes exemplos de que “é só ser bom e fazer direitinho que seu trabalho vai virar”.
Don L se coloca, metaforicamente, como um grande personagem para a demonstração do vazio que a indústria impõe a quem quer buscar o sonho de “viver de rap” no Brasil, pura e simplesmente. Não existe início, meio e fim. E a moral da história é bastante ambígua, aberta a interpretações diversas (como essa daqui o é). Até porque essa é uma obra a ser ouvida de trás para frente e só foi lançada a terça parte, portanto, não é possível estabelecer um conceito fechado sobre a obra como um todo. Tudo não passa de anotações, primeiras impressões e chutes (caso, também, desse texto).
Da mesma forma que o movimento surrealista se aproveitou de toda sua forma estética subversiva para criar uma identidade única, e que Karim Aïnouz explorou o silêncio e esse vazio existencial para deixar sua assinatura nos filmes que dirigiu, o processo construído por Don L é tão cheio de nuances que abre novas perspectivas sobre como fazer e trabalhar o rap como produto de consumo, o que torna o disco ainda mais interessante.
Aïnouz em seus filmes, ganha expressividade nas cenas silenciosas, preenchidas por planos longos onde pouca ação é concentrada e as falas morrem num silenciar que dá sentido apenas às subjetividades aplicadas sobre o que está acontecendo no momento. Os diálogos, boa parte elaborados para transitar entre planos carregados de vazios estruturais, deixam a vaga impressão do problema, mas nunca a solução exata. É uma eterna busca. Voltando ao O Céu de Suely, as decisões tomadas pela protagonista interferem na realidade de várias pessoas, porém o julgamento do motivo é impreciso. Onde, quanto e como o calo de Suely aperta? O exílio da personagem, que por vezes se vê em meio a crises existenciais providenciais, faz lembrar o narrador-herói de Campos de Carvalho — talvez o maior escritor surrealista brasileiro — em A Vaca de Nariz Sutil, dizendo que a realidade comum (Matrix, sistema) “é uma sensação de vazio com uma merda suspensa, e eu sou essa merda”.
Noves fora o humor torto da frase, quem nunca se sentiu assim? O vazio traz consigo um dos propulsores da arte contemporânea, que acompanha algumas das reivindicações mais comuns aos nossos tempos, pós-moderno, sendo a principal das queixas, talvez, o espaço para manifestação da identidade ou, indo mais a fundo, o espaço para novas maneiras de manifestar a identidade. O preenchimento do vazio com algo que force essa identificação provoca o conforto e traz, novamente, o indivíduo para a Matrix, num embate de rótulos e estereótipos. Depressão, paranoia, estresse e demais “males do século 21” são carregados, justamente, pela necessidade de fazer sentido e afirmar a identidade numa realidade criada para fazer bem a um grupo muito específico de pessoas. E o confronto se intensifica sem perspectiva de um fim.
O movimento surrealista, além de artisticamente contundente na discussão sobre a condição humana e o conceito de realidade, também foi um movimento politicamente engajado. E, nesse contexto, tudo o que o movimento surrealista, Aïnouz, Don L e Campos de Carvalho recriam é a força identitária e autossuficiente de histórias que são elaboradas a partir do vazio, mas que são alicerçadas por motivos e sentido próprios. Portanto, os paralelismos e contradições não fazem a mínima diferença, estabelecendo, em terreno árido, ideias para novos rumos. A própria razão comum — ou sistêmica — deixa de fazer sentido quando é pensada sob a ótica de Don L, “que é comunista, mas gosta de carros”. A força de recriar ambientes que transgridam a Matrix, numa capacidade autoimune de reproduzir uma realidade diferente das dos demais, é uma demonstração de poder por si só. Existe, no fundo de cada criação, de cada peça de arte, uma resiliência criativa que zomba de qualquer senso comum e transforma a própria realidade em resistência.
A força do paralelismo e da pessoalidade do conceito de identidade em relação ao que pode ser considerada uma realidade sistêmica — e doente — é capaz de transformar por completo o ambiente, a ponto dele se tornar favoravelmente complexo. É o caso do narrador-herói do romance A Vaca de Nariz Sutil, veterano de guerra que agora se encontra na busca pelo seu espaço, contestando arbitrariamente qualquer convenção social, mesmo sem conseguir romper com a barreira dos hábitos, como nesse trecho:
“Minha lógica era perfeitamente lógica, e isso os desnorteava e a mim principalmente. Tinham me ensinado tanta e tanta coisa que me julgavam um animal pensante, capaz de criar pensamentos para enfrentar esta ou qualquer vida, como um deus em miniatura, com alma mortal e tudo; de súbito fui virado do avesso, quem me virou não sei, o médico disse que fui eu mesmo, e as coisas mais simples se tornaram terrivelmente complexas, como viver, por exemplo, ou dormir sobre o lado esquerdo, como havia feito desde sempre.”
Don L não busca mais um sentido dentro da realidade comum. A mesma força com que critica a indústria também é canalizada de forma tão contundente no outro lado da moeda, o lado pós-moderno. A articulação de um sentido próprio coloca Don L, através da sua arte, nesse espaço vazio estabelecido entre os dois polos da Matrix, como fica bem explícito logo no início de Cocaína:
“As ruas já não cabem mais carros
A câmera não cabem mais fotos
A nuvem já não cabe mais vídeos
A ação não sabe mais o propósito
Tão temperado que ficou insípido
Tão bons modos que ficou inóspito
Tão colorida que ficou ridículo
Tão cheio que ficou um vazio nórdico”
Afinal, qual a verdadeira força do indivíduo na sua capacidade de influenciar e empoderar pessoas? Mas será que é possível sobreviver dentro dessa realidade sistêmica? Torna-se complicado definir um limiar que esteja fora de um quadro individual de acepção da própria realidade. E talvez, somente tentando olhar para a realidade de cada indivíduo, conseguiremos reconhecer a busca de outros que vivem nessa condição vazia e ajudá-los, numa tentativa sincera de fomentar o desejo no próximo de assumir o controle sobre a própria realidade.
Bem como o narrador-herói de Campos de Carvalho em A Vaca de Nariz Sutil, ou Suely, a protagonista de O Céu de Suely, as observações sobre a vida dentro da indústria fonográfica que Don L faz, junto de todas as digressões e comoção constantes pelos seus iguais de alma, o colocam em condição de tomar o controle de sua vida da forma que acha conveniente e trilhar seu próprio caminho; incerto, mas reconhecidamente seu. O trem do herói de guerra, o ônibus de Suely e o álbum de Don L representam, respectivamente, a autoridade dos três protagonistas sobre sua realidade ao decidirem retomar passos que, se antes dados em meio ao vazio, agora voltarão a ser percorridos com a certeza de serem dados em circunstâncias e condições as quais os próprios criaram, e não mais impostas por outras realidades não condizentes às deles. Observem bem o trecho final de Laje das Ilusões:
“O amor é violento, puro memo é a foda
Mas é doce veneno, ouro da minha história
Eu joguei tudo que eu tinha, pique Las Vegas
Onde perdedor se diverte, vencer é tédio
Agora eu tô de volta e quero mudar as regras
Vocês tão curtindo aí, plateia?
Eu quero tão intenso, o feeling desse bagulho
Ao ponto de lá no fim eu desejar fazer um looping”
É perceptível a segurança e a desenvoltura com que o Don L trata o tempo e o espaço durante toda a música final do disco, mas é na última frase “Ao ponto de lá no fim eu desejar fazer um looping” que o rapper evidencia seu poder sobre sua realidade. Ninguém é capaz de tirar Don L da sua zona, mesmo que isso custe a ele espaço e oportunidades na famigerada indústria da música. Na verdade, ele é capaz, agora, de criar seu próprio espaço na indústria musical, no seu próprio tempo.
A julgar pela qualidade musical do disco, é possível dizer sem muito erro que Don L, aos 36 anos, finalmente terá o reconhecimento e retorno que merece, inclusive financeiro. E que seu golpe na indústria foi certeiro, pois ainda existem lacunas a preencher com interpretações acerca da totalidade do seu roteiro e que serão naturalmente exploradas em matérias, entrevistas e estudos futuros, por que não?
Dentro do que é cabível dizer sobre o contexto usado para tentar transmitir os conceitos que levaram Don L a chamar a atenção de Aïnouz a partir do seu próprio vazio, apenas fica o pensamento de que a arte não precisa, mais uma vez, ser estabelecida dentro de padrões, encaixada em avaliações, notas, contextos e clichês. Basta fazer e permitir que façam. Nem que, para que tudo isso esteja lá, o artista tenha que narrar sua própria história e mostrá-la em camadas.
Mesmo que o mundo diga que é tudo muito bonito quando não é capaz, absolutamente, de enxergar a realidade alheia, ser real é isso, uma busca que começa no vazio e termina na tentativa de que olhem para o indivíduo com respeito, mesmo que esse respeito só exista através do que é propriamente belo pelo público. Não saber lidar com as fronteiras entre arte, público e beleza pode levar qualquer um à loucura, mas aqui se encaixa uma frase de André Breton que, talvez, Aïnouz possa utilizar num dos seus roteiros, principalmente se este resolver utilizar o escrito por Don L: “não é o temor da loucura que vai nos obrigar a içar a meio pau a bandeira da imaginação”.