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Perfil #01 – Vinícius Terra, tempo presente e o futuro lusófono

A vida seria uma eterna — e bela — descoberta se não fossem os “se’s”, certo? Impossível saber, mas é uma teoria que atrai a muitos e não seria muito lisonjeiro lhes tirar a razão, afinal, cada qual enxerga ou abstrai a realidade da forma que bem entende, senão que bem emula. Discutir a realidade apoiando-se a uma obra que seja perfeitamente sustentável no presente é difícil, já que uma obra sustentável em si mesma não é, para os moldes atuais, de grande valia para quem se beneficia do produto, seja consumidor ou produtor. As duas pontas objetificam o sentido de produto e acabam apontando para um mesmo fim. E o fim é pleno em sua querência.

Talvez sirva de conforto para muitos que tudo convirja de maneira definitiva para um mesmo fim trágico e instantâneo, mas aí não faria sentido dar continuidade a uma longa — e exaustiva — linha de pesquisa e de incômodo com a falta de razoabilidade para com o caminho que se leva até o “objeto-fim”, e a capacidade — que deveria ser inata (aspecto ainda em desenvolvimento na linha de pesquisa) — de cada indivíduo para abrir espaços para outros indivíduos se manifestarem e, assim, tornarem essa noção de realidade algo mais aprazível de um ponto de vista coletivo.

Questionar a realidade em si ou os desdobramentos da realidade no processo da vida é, senão o coração, a artéria principal do hip hop e, por isso, torna-se evidente a necessidade do aparecimento de novas visões que estejam preocupadas em manter a relevância no tempo presente, ou melhor, sobre o que é contemporâneo, sobre movimentos que acontecem em todos os aspectos e criam novas tendências e/ou novas maneiras de convívio.

Vinícius Terra é, portanto, um visionário.

Professor de português e literatura, Vinícius também está envolvido com o hip hop desde 1999. Em quase duas décadas se movimentando em prol da cultura, seu leque de realizações é tão vasto que a música, efetivamente, pode ser considerada apenas um dos desmembramentos pelo qual caminha o MC, abrangendo mais títulos ou funções, quantas forem possíveis no atual momento que o hip hop vive no Brasil, seja como mercado ou como cultura. É comum encontrar o nome Vinícius Terra citado em entrevistas/documentários que relatam eventos e/ou organizações e/ou experiências responsáveis por incentivar a cultura e abrir espaços para novos nomes não apenas aparecerem na cena, mas manterem-se nela. Não seria justo, portanto, colocar uma lupa somente sobre a carreira musical do artista e deixar de lado todo o trabalho desenvolvido durante essa longeva carreira num meio ainda muito jovem como é a cultura hip hop. Na verdade, como uma sutil subversão da proposta do texto, a música de Vinícius Terra é indissociável dos seus objetivos como professor, rapper, produtor cultural ou facilitador no meio da arte.

Enxergar a cultura hip hop como presente — no tempo — é fundamental para que seja colocado em perspectiva o trabalho do MC. Em se tratando de mercado, por exemplo, o rap é apresentado ao público como “o ritmo do futuro”, novo ditador de tendências do mercado fonográfico nacional. Em se tratando de relevância ou “construção lírica”, o rap vem sendo relegado a um passado que, em se tratando da pouca idade do movimento, é relativamente distante. A forma dicotômica e alheia à realidade do movimento não pega apenas o público — que é o objetivo-fim de qualquer forma de arte —, mas também projeta sobre a imagem dos artistas que fazem da cultura seu trabalho uma obrigação de serem fieis a ideias passadas ou futuras que não correspondem, muitas das vezes, com a realidade, com a atual forma de consumir rap — e cultura — nos tempos atuais. Mover-se no presente permite muito mais que uma análise lúcida de contexto e conjuntura. Entender o tempo presente permite que novas perspectivas sejam colocadas em prática.

É possível, portanto, começar a estabelecer a música de Vinícius Terra como parte de um compromisso, fixa a um ideal maior, que ele assume ao se reconhecer dentro da cultura e, automaticamente, ao ser impelido a desenvolver atividades dentro do hip hop, se movimentando através da realidade apresentada no tempo presente.

Ao ouvir seu primeiro e único disco Quando a Bossa Encontra o Rap, de 2008, é sensível a trajetória de quase uma década condensada num projeto que, estruturalmente, redefine rumos ao unir dois ritmos distintos, o rap e a bossa nova, que já estiveram combinados em algum momento, mas em meio a participações esparsas ou influências indiretas apenas. A construção do conceito, como do disco em si, foi um processo longo. Vinícius se manteve reservado ao projeto desde 2004. Porém, sempre tendo em vista o seu meio e nunca alheio a relevância de construir uma obra sólida no seu tempo, a realização do disco foi original à época e, exatamente por isso, soa original hoje, uma década depois do seu lançamento. Não à toa o disco abriu portas para o MC, que ao ver a oportunidade de estudar em Portugal, rodou a Europa por dois anos com o projeto.

A vivência de dois anos na Europa, estudando e rodando com seu trabalho, permitiu a Vinícius o contato com outras culturas, interferindo na sua forma de se manter ativo na realidade, no tempo presente. Novas perspectivas, naturalmente, viriam a ser abertas. Entretanto, antes de novos passos e projetos, o ciclo do primeiro disco ainda reverberava e apresentava possibilidades de desenvolver novos elementos, de se manter presente. Em meio à relevante presença exercida por seu projeto, foi lançado o songbook de Quando a Bossa Encontra o Rap, o primeiro de rap em língua portuguesa.

O ciclo de Quando a Bossa Encontra o Rap, iniciado em 2008, é resultado de um longo processo de desenvolvimento e descoberta. Desenvolvimento pelo conceito, organização e reconhecimento que o trabalho proporcionou ao MC, fazendo do seu produto, da sua peça de arte, um portfólio sólido para tudo que o envolve; descoberta pela nova forma de tratar o rap, pelo pioneirismo e pelas possibilidades que o ineditismo desperta. Não que seja fácil ter que explicar a relevância da própria criação, no caso o nicho criado pela bossa-rap. A elaboração de um conceito inédito causa estranhamento, a exposição quase imediata do conceito a um público que não o brasileiro também causa estranhamento, a aura que circunda a bossa nova e as próprias dificuldades do pequeno mercado que o era rap há meia década, por exemplo, são dificuldades naturais a serem enfrentadas. A única reação eficaz a esses movimentos — ou obstáculos — é manter o pensamento e o trabalho concentrados no tempo presente.

A concentração no trabalho e a elaboração de novas formas de estimular a cultura hip hop e tentar trazer para perto o universo pluricultural que teve a oportunidade de vivenciar na Europa fez com que, em 2013, a primeira colaboração entre países lusófonos acontecesse no rap, com a inédita conexão entre Brasil, Portugal e África, na música “Versos que Atravessam o Atlântico”. O single, projeto embrionário, foi pioneiro ao desbravar, novamente, formas inéditas de trabalhar o rap no país e disseminar projetos mais amplos que a própria música — produto —, construindo pontes para novos alicerces culturais que vieram a ser consolidados pelo próprio Vinícius Terra um ano depois, em 2014, com o Projecto BPM: Brasil Portugal Misturados, em parceria com os portugueses Mundo Segundo e Sr. Alfaiate.

Se levantar a bandeira lusófona dentro da cultura hip hop não foi a melhor alternativa possível em se tratando de visibilidade de mercado dentro dos atuais moldes pelos quais a indústria — que está em processo de formação — caminha no Brasil, em compensação foi um divisor de águas ao garantir que, além da liberdade artística que qualquer artista presa por natureza, Vinícius Terra pudesse devolver ao hip hop tudo o que foi proporcionado a ele. Locado num nicho basicamente único no país, seu intercâmbio materializado através da música vai sendo inflado por pessoas dispostas, cada vez mais, a usufruir e colaborar com o sucesso do ideal lusófono no país.

Como dito, a música é uma fração das atividades idealizadas e realizadas por Vinícius dentro da cultura hip hop. A conexão entre países lusófonos foi desenvolvida em outros aspectos, sobretudo no que tange ao fomento à comunhão cultural entre os países e a criação de espaços para novos talentos poderem usufruir desse intercâmbio cultural. Iniciativas como o festival Terra do Rap, que se mantém até hoje com edições no Rio de Janeiro e Lisboa, incentivam a troca de conhecimento entre países de língua lusófona com representantes da cultura hip hop participando de atividades como workshops, palestras, batalhas de rima e shows abertos ao público, proporcionando conhecimento, imersão e a oportunidade de ver uma nova porta aberta dentro do universo do rap, hoje mais abrangente e mais diverso que há cinco anos, quando o projeto lusófono de Vinícius Terra teve sua primeira semente plantada — e/ou gravada.

Os novos caminhos descobertos levaram a novas iniciativas e, naturalmente, novas iniciativas precisam se tornar realizações materiais se quiserem ser relevantes e fazer parte dessa constante troca com o tempo presente. Desta forma, Vinícius, que encerra o ciclo com seu primeiro disco Quando a bossa encontra o rap para elaborar uma nova narrativa dentro da própria carreira, busca agregar as novas experiências adquiridas e a visão do que o hip hop, enquanto movimento contínuo, pode proporcionar de forma universal, ampliando espaços. No entanto, as portas abertas para/por Vinícius Terra desde que abraçou a lusofonia como uma abordagem capaz de movimentar a cultura hip hop no seu meio o levaram a projetos que, sem dúvidas, captaram novas perspectivas e mostraram a amplitude que sua música poderia tomar.

Dessa nova fase surgiu o primeiro projeto sólido, o EP Progresso em processo de 2015, em parceria com o DJ Machintal. Como o próprio nome do projeto explicita, Vinícius Terra estabelece novos parâmetros para que sua experiência, junto à diversidade e a universalidade lusófona, estejam tão presentes na música quanto nas outras áreas em que atua. O referido EP permanece, em questão de exposição, à margem de seus dois projetos anteriores, o que não o torna menos importante em relação à obra do MC como um todo. Tendo estabelecido o novo horizonte, agora artisticamente, o espaço está aberto para que a continuidade e a relevância do trabalho sejam postas à prova com um novo projeto tão sólido quanto os demais.

Ainda não tendo encontrado exatamente a fórmula que condensasse toda a sua experiência num álbum, conciso e sólido, Vinícius se manteve atento aos outros projetos dos quais é idealizador e/ou colaborador, disseminando a cultura hip hop e a lusofonia. Um dos projetos que merece destaque — além do Terra do Rap — é a exposição itinerante “A Energia da Língua Portuguesa”, realizada pela EDP Brasil em parceria com a Fundação Roberto Marinho.

Com a exposição itinerante, Vinícius Terra teve a oportunidade de rodar o Brasil espalhando a lusofonia e convidando outros MC’s para participar dessa comunhão cultural. Num dos eventos nos quais a exposição esteve presente, o MC convidou o rapper, escritor e ativista político angolano Luaty Beirão (tendo a alcunha de Ikonoklasta enquanto MC) na 15ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2017.

Luaty foi um dos convidados principais do evento, tendo acabado de lançar no Brasil seu livro de não ficção Sou eu mais livre, então: diários de um preso político angolano — ainda censurado no seu país natal —, editado pela editora portuguesa Tinta da China. A estrutura fornecida pela organização da exposição itinerante juntamente com a expectativa criada pela participação do autor angolano foi uma demonstração de força chave, senão definitiva, para a continuação do seu trabalho com a lusofonia. Vinícius Terra, MC e professor de português/literatura por uma década, esteve presente, participando de forma central, na maior festa literária da América Latina. Mais um espaço aberto dentre as infinitas possibilidades da mistura entre hip hop e lusofonia.

Apresentando músicas que farão parte do seu novo álbum Para a lusofonia… Nasce um novo dia, a passagem pela Flip foi essencial para consolidar o momento lusófono que agora circunda sua obra e boa parte da produção cultural atual do país. Foram quatro músicas apresentadas mais alguns versos a capella recebidos com ardor por um público que começa a reconhecer a cultura hip hop, finalmente, como uma maneira plural e sólida de manifestação cultural.

O disco Para a lusofonia… Nasce um novo dia, produzido pelo excelente Gabriel Marinho, será lançado pelo selo Mondé. O projeto promete consolidar artisticamente a conexão feita pelo MC entre a cultura hip hop e a lusofonia, estabelecida desde 2013. Em fase final de produção, o novo projeto chega quando seu disco de estreia, Quando a bossa encontra o rap, completa uma década. Se o espaço “entre discos” pode ser considerado longo em se tratando da fluência de lançamentos que o mercado pede e/ou necessita, é importante observar que seu primeiro disco continua a reverberar e a abrir novas possibilidades dentro do rap, e assim deve funcionar com seus novos passos dentro da música junto ao movimento lusófono. Mantendo-se constante e enxergando novas possibilidades em meio a um tempo em que passado e futuro são discutidos com certa indulgência pelo público, Vinícius Terra oferece as habituais solidez e inovação em seu novo disco.

Por falar em inovação, percebam que: a bossa-rap de Vinícius se mantém atualíssima; o movimento lusófono é um leque cultural amplo que está em processo de descoberta pelo mercado brasileiro, inclusive sendo, em conjunto com a cultura hip hop e Vinícius Terra, destaque num dos maiores eventos culturais da América Latina, a Flip 2017; outras iniciativas lideradas pelo MC, como o Terra do Rap, tomam formas e contextos maiores dentro do cenário atual, abrindo possibilidades sólidas para novas maneiras de ocupar espaços dentro da cultura hip hop.

Novos espaços criados para que novas formas de enxergar e trabalhar a cultura hip hop sejam postas em prática. Esse texto não é necessário para ratificar o trabalho de Vinícius Terra em todas as funções e projetos que realiza, para isso basta estar atento ao tempo presente em toda a sua extensão. Extensão que agora passa a ser geográfica também, ampliando espaços e alcançando todos os países lusófonos. Criar espaços no tempo presente. O que resta é esperar a alvorada lusófona de Vinícius Terra.

 

Ouça os discos de Vinícius Terra no Spotify: https://spoti.fi/2JB3LIn

Arte original por Nátali Nuss (Instagram: @nuss.art)

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