O olhar do roteirista e diretor estreante Marcelo D2 em “Amar é para os fortes”, com estreia prevista para agosto, carrega as marcas de sua formação. Os sons garimpados nas barraquinhas de vinis nas ruas 13 de Maio e Pedro Lessa, o hip hop na Lapa, os shows de rock no Garage, o skate por todo lado…
Esse circuito é facilmente identificável em seu trabalho – o Rap com sotaque de rua e de Rio que ele forjou inicialmente no Planet Hemp e que depois desenvolveu em sua carreira solo. Mas há um ponto nesse mapa afetivo da cidade que, apesar das pistas espalhadas pelas letras aqui e ali, passa batido e se revela de maneira mais evidente agora: o Estação Botafogo.
‘Se quero fazer um filme de hip hop, por que não samplear imagens? Então pus referências a filmes como “Kids”, naquela cena de porradaria na praça. Tem “La haine”, “Poderoso chefão”, “Cidade de Deus”…’
– Ia direto pra lá. O cinema foi uma grande escola. Descobri Jarmusch, Kubrick, Spike Lee… “Faça a coisa certa” mudou minha vida, aquilo era muito Rap. Vi “Sid and Nancy” (de Alex Cox) lá com neguinho dando mosh. Até tentei entrar em Bergman, esse lance mais angustiado, mas não era a minha. Sou fruto da cultura pop, ela foi minha salvação – conta D2, que explica que teve a influência fundamental de um amigo nessa descoberta. – Quando fui morar no Catete fiquei num buraco até encontrar o Skunk (com quem fundaria o Planet Hemp e que morreria em 1994), que era superculto. Tinha uma coleção de VHS, íamos pra casa dele e víamos 18 vezes filmes como “Faster, Pussycat! Kill! Kill!”.
“ARTE DA APROPRIAÇÃO”
O rapper conversa na sala de sua casa, com estantes ocupadas por peças de toy art e livros de cinema e street art, que testemunham seu interesse pela imagem – assim como as fotografias, gravuras e pinturas que tomam conta das paredes. Todas essas referências afetam indiretamente as escolhas estéticas de D2 em “Amar é para os fortes” – filme que contará uma história, mas também será um “álbum visual”, com 14 canções inéditas com participação de artistas como Gilberto Gil, Marisa Monte, Alice Caymmi e Rincon Sapiência.
Porém, é de sua formação cinéfila que ele arranca sua inspiração de maneira mais clara – num procedimento inerente ao hip hop, ao qual D2 se refere com termos como “arte da apropriação”, citando o escultor Jeff Koons.
– Se quero fazer um filme de hip hop, por que não samplear imagens? Então pus referências a filmes como “Kids”, naquela cena de porradaria na praça. Meu filme abre com uma cena que remete a “Wild style”, com dois rappers rimando sentados numa escada. Tem “La haine”, “Poderoso chefão”, “Cidade de Deus”… Tem uma hora do filme em que aparece uma televisão passando “Febre do rato”, do Cláudio Assis, enquanto rola uma música que fiz também chamada “Febre do rato”. Pensei ainda em citar Tarantino, mas achei que aquele sangue todo não ia ser legal – brinca ele.
Seu recorte visual pop passa também pelo cinema de Spike Jonze (“Skate tem muito cinema, ele veio da͔, diz D2 referindo-se aos filmes do diretor sobre o tema) e pela fotografia de Martha Cooper:
‘No dia seguinte ao da morte de Marielle Franco, fomos gravar uma cena de tiroteio. Imagine o peso disso numa equipe com 60% de mulheres.’
– Busco o visual urbano, concreto, da obra dela. É um filme num Rio de Janeiro que não tem praia. De Spike Jonze peguei a coisa de seguir uma narrativa não tão linear ou careta, na linha de “Adaptação”, “Quero ser John Malkovich”. De Spike Lee tem o uso da linguagem contemporânea do hip hop, o personagem frágil, representante da minoria (ele ilustra a reverência pegando na estante seu livro sobre “Faça a coisa certa” autografado). De Werner Herzog, com quem fiz uma masterclass, peguei a ideia de que não tem esse lance de cadeirinha de diretor: “Você vai ficar sentado enquanto alguém vai lá fazer seu filme?”.
“Amar é para os fortes” é uma clássica história de superação pela arte, encarnada na saga do garoto Sinistro (vivido por seu filho Stephan Peixoto). É um enredo que D2 define como “quase autobiográfico”.
– Tem um diálogo que sintetiza esse dilema de nascer numa cidade violenta e achar que pode mudar pela arte – nota D2. – O Sinistro conversando com o amigo Maytor, que diz que tem que pegar arma, dar tiro, roubar. Mas Sinistro fala que não quer isso, que quer ser artista e tal. Maytor presta atenção, pensa um pouco e depois fala: “Tá ok, então vamos pegar arma, roubar todo mundo e arrumar pra tu ser artista”.
O rapper defende que a ideia positiva do filme é mais do que romantismo vazio – seria, sim, algo necessário em meio aos ânimos do debate político.
– A ideia de Sinistro de não querer pegar em armas, e sim se agarrar no mínimo de amor no qual ele pode se agarrar, é a grande revolução. Hoje se vive essa discussão idiota sobre esquerda e direita. Discussão alimentada pelos idiotas, porque eles se alimentam do caos – reflete. – Mas é difícil, claro. No dia seguinte ao da morte de Marielle Franco, fomos gravar uma cena de tiroteio. Imagine o peso disso numa equipe com 60% de mulheres.
No filme, assim como nas músicas que compôs para ele, D2 explica que busca se aproximar desse universo realista trabalhando uma dinâmica de tensão/relaxamento. Os arranjos do disco fazem isso combinando a contundência do Rap com a elegância afrobrazilian jazzque ecoam Moacir Santos, Tincoãs e os afrossambas de Baden e Vinicius (“Minha maior referência nesse sentido foi José Prates”, ressalta D2, citando o maestro cultuado mas pouco lembrado).
“VOU DEVER FAVOR PRO RESTO DA VIDA”
As canções visitam também a Bahia de Caymmi e o sertão de Luiz Gonzaga e dos repentistas – com a voz de Gilberto Gil cantando sobre o acordeão: “É que eu luto e não me rendo/ Caio e não me vendo/ Eu sigo o movimento que pra mim é natural/ De resistência cultural”.
“Amar é para os fortes” – nome tirado de um texto de seu amigo João Velho, filho de Cissa Guimarães, no qual ele falava sobre a frustração com a pena dada ao homem que atropelou e matou seu irmão Rafael Mascarenhas – foi feito com recursos de patrocínio direto, sem Lei Rouanet:
– Muita gente ajudou. Vou dever favor pro resto da vida, dançar valsa na festa de 15 anos da filha do cara da van, essas coisas. As gravações das músicas também têm gente pra caramba, os amigos todos. Só numa faixa tem Kassin no baixo, Rodrigo Amarante na bateria, Money Mark no teclado… Os créditos vão ser quilométricos.
“Se quero fazer um filme de hip hop, por que não samplear imagens?”