“Oro mi ma, oro mi mayo Oro mi mayo yabado ye ye ô”
O.N.F.K
24 horas pensando e ouvindo o double single lançado ontem, dia 4 de abril, em seu canal. 24 horas imaginando como começar essa matéria. Decidi começar exatamente como Amiri termina “O.N.F.K.”
Em yorubá, Amiri e Lilly B saudam Oxum, orixá que é rainha da água doce. Um verso que referencia a canção de Bantos Iguape “Canto Para Oxum (Oro Mi Maió).”
Nela, o interprete conta que essa era a cantiga que sua mãe lhe cantava, ensinada pelo avô. Uma música que traz toda a força da ancestralidade. Uma mensagem de esperança, assim como “Se Eu Morresse Hoje / O.N.F.K.”
Embalados pelo toque do tambor, somos transportados às dores dos negros que, mesmo escravizados, cantavam e dançavam suas raízes. Que resistiam.
Os negros em sofrimento, cantavam e alegravam o seu coração.
Canto para Oxum
E é resistindo que Amiri chega a 2019. Que ele volta, pela sua fé e pelos seus “Por mim e pelos pretão eu voltei! Pelos corações que toquei, e dessa vez eu fico, ok?”
O artista aprende e nos ensina a maior lição de todas: O.N.F.K. significa ODO NNIEW FIE KWAN uma simbologia adinkra dos Axantes, de Gana (na África), que em português significa “ O amor ilumina seu próprio caminho, nunca erra o caminho de casa.”
A partir daqui passo minha visão pessoal sobre essa odisseia de superação, na qual Amiri é o próprio herói. E nós, devemos ser os nossos em nossas vidas. Porque só você pode lhe salvar meu amigo.
O double single “Se Eu Morresse Hoje / O.N.F.K.” são duas faixas que, a primeira vista, parecem absolutamente dicotômicas. Elas farão parte do próximo álbum do MC, que chega esse ano.
O som tem Deryck Cabrera na gravação, produção que visivelmente fez um incrível trabalho guiando o ouro bruto que é Amiri, até forjar a joia que é esse lançamento (e o próprio MC, sinceramente, Amiri brilha).
A mixagem, masterização ficaram por Luiz Café, que nos presenteia com um perfeito encaixe entre as vozes e os atabaques na segunda música.
O refrão de “Se Eu Morresse Hoje” por si só define a doença do século: a depressão.
Se eu te disser o que eu senti: medo, medo de não ser feliz, feliz
Quando eu não tive fé eu desisti, tão cedo, cedo, que nem vi o bem que eu fiz, que eu fiz!
Besteira pensar em dicotomia! Não é um lançamento de opostos, é a epítome da vida em canção! Não precisa de metáfora ou comparação. São músicas cruas e literais pra essa montanha russa de altos (com L) e baixos que significa viver. Nada é permanente, tudo é transitório.
“E o estado dessa fita tá avançado, e eu tô cansado de ficar cansado, vi coisas que cê ia correr se cê visse, eu não acho que eu vá morrer de velhice”.
O trecho lembra o filme “Get Out” (Corra) do Jordan Peele. Uma baita referência à trama que expõe o racismo estrutural. Expõe também uma existência de terror amenizada por humor, mas não esconde a verdade: a opressão que nós, brancos, infligimos a população negra.
Não só isso, mas a própria supressão da cultura negra, causada por uma sociedade patriarcal e eurocêntrica. Bem da verdade, quem viu o que Amiri e Chris Washington viram, quem sentiu o que eles sentiram, provavelmente também quis correr.
Em “eu não acho que eu vá morrer de velhice” o rapper não nos transporta apenas para a problemática do suicídio e da depressão que acomete grande parte da população. Segundo pesquisa o racismo é uma grande causa deste problema. O artista nos lembra que no Brasil de acordo com um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2017, a população negra está mais exposta à violência.
Embora sejam 54% da população brasileira, os nregros representam 71% das vítimas de homicídio no pais. Um perfil tristemente formado por jovens, afrodescendentes e de baixa renda.
Amiri fala abertamente sobre sua depressão. Fato que nunca foi segredo aos fãs do rapper. Em 2016, ele decidiu afastar-se da cena, comunicando por meio de um post sua decisão, no qual expôs todo seu sentimento e o cansaço:
Vou compartilhar uma história por aqui. Em 2013, algumas tragédias pessoais transformaram minha ansiedade na doença do século.
Em depressão, considerei o suicídio várias vezes. Parecia que meu plano de esperar a vida acabar, estando doente daquele jeito, seria uma eternidade umbralina.
Escrevi “Um Mic”, escrevi “Menino Kirikou”, “Cura”, minha própria bula de antidepressivo, deitava e dormia torcendo pra não acordar.
Minha mente estava conseguindo asfixiar o coração.
Em janeiro de 2014 eu já tinha decidido abandonar a música. Sugeri uma reunião com a equipe que éramos, entristeci amigos, baguncei sonhos… Triste. Mas estava decidido.
Lucas, Marcílio, Léo, tenho amor por vocês!
Um dia tudo faria sentido.
Escrevi uma carta de despedida do Rap e postaria assim que lançássemos a mixtape “Antes, Depois”. “Eu Saí” seria meu último registro.
Eu iria embora do Brasil, ia me dedicar ao meu inglês arriscando uma outra vida, tentando fugir de mim mesmo. Cansado de existir.
Minha mãe estava ali, comigo, em todos os sentidos e óticas, meu porto…
Recebi uma ligação de uma pessoa a qual prezo muito, sugeriu de nos trombarmos, conversar sobre o que ele sentiu estar acontecendo.
Nessa conversa, o Parteum me disse: Amiri, não importa se você vai fazer um disco inteiro falando de Deus, só não pare de fazer.
Era aquilo.
Senti que eu precisava existir, de algum jeito digno, reconsiderar a oportunidade de estar respirando, também fazer jus a tal oportunidade.
A extensão do Espírito iluminou meu entendimento, onde vim a perceber que não desistir de mim mesmo era O CAMINHO rumo a mim mesmo.
Sabe qual que é a fita? Amadurecer minha sensibilidade. É minha responsabilidade kármica.
Não desista de você.
Eu sinto o mesmo amor.
Ainda estou aqui.
Perdão é Deus em nós.
Oxalá que eu toque vidas, honrando cada, toda consciência e coração que acessar o que expresso.
Gratidão a quem não desistiu de mim, me mostrando como olhar o próximo e dizer: Não desista de você.
Quando a existência cansar, não desista de você.
No Brasil, transtornos mentais não se limita a depressão, ansiedade mas também à dependência e uso de substâncias. Existe uma classificação internacional de doenças chamada CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). Pelo site do SUS, podemos ver todos os transtornos mentais que entram na classificação do CID10 F00 ao F99.
A cada 45 minutos, uma pessoa comete suicídio no Brasil . A maioria das vítimas são jovens de 15 a 29 anos. Segundo o Ministério da Saúde, nosso país registra 11 mil casos de suicídio por ano.
Caso você precise de ajuda com qualquer transtorno mental e psicológico, deixo aqui alguns contatos gratuitos. Você não está sozinho. Somos muitos, estamos aqui e continuamos lutando!
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
Centro de Valorização da Vida (apoio emocional e prevenção do suicídio)
Quando Amiri diz “Meu melhor é invisível, tudo que tenho é o que senti.” temos por obrigação lembrá-lo que existe uma falha gravíssima na sua afirmação.
Seu melhor é visível, é audível e é real nos nossos corações. E é muito mais que isso pra quem tem o prazer de conviver com ele. Ele é a voz de MUITA luta.
Medo e coragem num pote só, que nos faz querer guardar com carinho e cuidado, quase intocado. É a famosa expressão “queria te guardar num potinho.” (vocês já vão perdoando os meus clichês ok?)
A primeira faixa traz no final uma espécie de carta de suicídio, carta de despedida, seja lá como você quiser chamar:
Perdido de novo, mas dessa vez eu desisti de me encontrar
Felicidade é uma chance que não mereço
Não chore minha ida, não sinta pena
Deixe a verdade cumprir seu papel…
Eu desisto de existir
Que Deus me perdoe, que o amor me perdoe
Que o Seu amor me leve de volta pra casa
Se Eu Morresse Hoje
A carta bate na alma. Especialmente, para aqueles que um dia discaram 188 (número do CVV), na esperança de uma voz desconhecida lhe convencer a não desistir.
Antes dela, o compositor conta na música sobre um amor que acabou. Existe uma melancolia aqui, de certa forma, uma insinuação daquela voz em nossas mentes que nos diz que não fomos fortes, não fizemos por merecer.
Não é verdade. O tempo às vezes passa em dor maior, mas o sol vem trazer um bom dia. Vencer e merecer é lutar pra ver isso tudo acontecer. É ligar pro CVV, é se abrir.
Minha crença me diz a mesma coisa que o artista nos diz: “Só vou parar quando eu ficar farto de orar de joelhos”. E nosso objetivo principal é a evolução espiritual.
Importante lembrar, na Hip hop Amiri não foi o único a abordar a morte. Quando Mac Miller faleceu, escrevi um texto sobre ele e a dor de perder. E ele nos deixou com uma canção inesquecível sobre:
Denov também é uma lembrança fundamental nesse caminho de falar sobre despedidas. Por isso deixo aqui esse som… Que é pra gente lembrar de viver plenamente:
Existir nesse mundo não significa viver. Viver mesmo é se encontrar e ser feliz. É busca… E diferente do que a gente pensa, isso é eterno. Cada pessoa, cada acontecimento, cada dor e cada alegria contribui.
“Mas você não fez por onde merecer nada além de se ver ligando pro CVV!”
Deus não me deixa mentir, esse amor foi meu céu foi meu chão
Ou eu chamo o mundo pra um one on one
Ou deixo no repeat “A change Is Gonna Come”
Sam Cooke em, 1964 escreveu, em 1964, a canção “A change is Gonna Come”. Essa é uma referência que não quero deixar passar por diversos motivos.
A música é inspirada em situações pessoais na vida de Cooke. Um dia, o cantor foi expulso com a sua crew de um motel só para brancos na Louisiana. Foi assim que surgiu esse som, um hino para o Movimento Negro pelos Direitos Civis. É uma mensagem de dor e esperança, assim como
“O.N.F.K.” e “Canto Para Oxum (Oro Mi Maió).”
It’s been a long, a long time coming but I know a change gonna come, oh yes it will
“Já faz muito tempo, mas sei que uma mudança virá”.
A passagem entre as duas músicas do lançamento de Amiri funciona exatamente como deveria. Uma ponte. Leva-nos de um ponto de partida onde há dor e sofrimento, a outro, que não não sei bem como descrever. Ou melhor, o próprio artista descreve no refrão “Me diz quem lutou? – Eu! Esse tempo todo? Eu!” É o momento no qual a gente percebe que passou por um caminho difícil e conseguiu. Deu conta! Lutou e não desistiu!
Agora limpa as lágrimas, respira. E ai, e se você morresse hoje?
Pois é, estes são oito minutos e 15 segundos de letra lírica e melodia pra nos lembrar que não é só o CVV que oferece apoio emocional e prevenção do suicídio.
A música também. A música salva! Salva de muitas formas, salva pelo seu teor educativo, por dar oportunidade e representatividade, por dar propósito. O Hip hop especificamente, dá esperança pra tantas pessoas que hoje se encontram em situações de vulnerabilidade social. Que também acreditam que felicidade é uma chance que elas não merecem.
A letra do Amiri vem cheia de referências, África em tudo que escreve, amor, luta. Separei alguns trechinhos apenas pra contextualizar e nos lembrar que o talento de compositor do artista.
Se você quiser mesmo conhecer todas, pode ir ali no lindo texto da Ana Rosa, no Polifonia Periférica. Lá estão as referências que Amiri faz a Oxum, ao Racionais, ao filme O Sexto Sentido, ao artista Thomas Azier, ao próprio som “Licença Aqui (Cheguei)”, do EP Êta Porra!, ao Centro de Valorização a Vida (CVV) e muito mais!
Amiri diz:
Passei por tudo de osso
E a força que encontrei no fundo do poço
Faz eu poder medir o universo
E colocar o mundo no bolso!
Amiri
Verdade e esse ano é dele. Se não for a gente faz ser. Se não conseguirmos, ao menos hoje ele sabe que tocou nossos corações. Que é luz nesse mundo. E que quando ele não acreditar, pode saber que a gente acredita!
E você ai, quando estiver sofrendo, com medo, pra baixo, perdido… Cante esse mantra
Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu… Me diz quem lutou? – Eu! Esse tempo todo? Eu!
E se ainda faltar coragem pra levantar da cama, escuta essa aqui:
No mais, queria agradecer o suporte de todos que correm do meu lado. Sem esquecer: Ora ie iê ô… olha por nós mãezinha!