Era 2019, abril e quase Páscoa. Curitiba, tempo frio e no relógio 9h da noite. Eu já um tanto sem paciência desde as 17h aguardando o show do Sant.
Seria o penúltimo de um jovem rapper que ainda “É o Rap”.
Movimentação no palco, LP Beatzz coloca um som. A plateia grita. Sem pretensão, um jovem franzino de apenas 24 anos aparece posicionando os microfones.
Sant entra com “UFA”, faixa três do penúltimo disco do Djonga (mais um que, em todos os sentidos, é real), “O menino que queria ser Deus”. Na track participam o novato e promissor Sidoka, Djonga e o próprio Sant.
A letra dita o clima do show:
Óh, quem aprende a escrever
UFA
Conhece o peso da caneta (Pois é)
O poder, a dor, o prazer, o que for (O que for)
O que sair dessa gaveta (Aham)
Entre os milhares de olhares (Milhares de olhares)
São milhões de frustrações (Milhões)
Todo orgulho e migalha engolidos (Todo orgulho e migalha)
Em trilhões de prestações (Aham)
Vou pro meu canto, já preparando o psicológico para momentos que, por conhecimento prévio, sei que vão doer mais que um soco de Francis Ngannou.
Meu primeiro show do artista foi fevereiro do ano passado. Intimista, poucas pessoas. Neste mais de um ano ele continua um músico compenetrado. Entretanto, hoje parece realmente mais livre.
Na plateia alguém pergunta sobre o afastamento do MC do rap. A resposta é curta e simples:
“Não vou parar, eu já parei. Tô igual jogador de futebol, só cumprindo tabela.” Assim diz o artista, vestido com a camiseta azul Arsenal.
Dia um de abril o artista anunciou a saída prematura do Hip hop através de sua conta no Instagram. Confiram o vídeo que foi postado no Instagram Stories de Sant:
“Vim passar umas visões para o público a nível de gratidão. A primeira é que eu parei de fumar, a segunda é que eu parei de fazer Rap. E antes de qualquer explosão de romantismo, por favor, por amor, saibam que isso é muito mais difícil pra mim do que para qualquer outra pessoa, por isso eu reconheço minha consciência.”
Sant
O rapper deixa clara a dificuldade de sua decisão. O dia da mentira foi escolhido exatamente por ser uma data dicotômica. Brincadeira? Não.
O músico fala sobre sua decepção em relação ao mercado do Rap. Ainda assim, agradece todos os encontros que o Hip hop lhe proporcionou, incluindo Mazabi, sua mulher Pâmela e seus amigos.
O MC conta que ainda há um EP e singles em produção. Estes ainda serão lançados. Seu trabalho como produtor executivo e diretor musical dos discos de Bukola e Angola, assim como algumas participações com o grupo 3030, Leal, rapper do grupo PrimeiraMente e Fábio Brazza, ainda acontecerão. No mais, não devemos esperar aparições do artista.
Seus últimos shows acontecem em Abril e sua agenda já foi fechada. Após a apresentação em Curitiba, no Paraná, que ocorreu domingo, 14 de abril, Sant faz seu último show em Nilópolis, no Rio de Janeiro, dia 21.
*Consta na fanpage de Sant uma participação no show "Growers & Kronic convidam SANT" em Granfinos, BH, neste final de semana.
A mulher do artista, Pâmela Guidorizzi, relatou por meio de sua conta no Twitter, um pouco sobre o atual estado do artista, que reflete diretamente em seu afastamento. Segundo ela, Sant busca de volta sua vontade de viver.
A saída do rap é sobre sobreviver
Por mais triste que seja a notícia: o show tem que continuar. E continua! Sant e LP revivem os maiores sucessos. O artista conta que, por quatro anos, morou com Marechal. Junto com Mr Break, foi Marecha quem produziu o álbum O Que Separa os Homens dos Meninos Vol. I., em 2015.
Sant é de Pilares e cresceu na zona norte do RJ (o mundo ao norte). Sua mãe, Patrícia de Araújo, é bastante citada em suas músicas e cuidou sozinha do filho durante muitos anos.
Em “O Que Separa Os Homens dos Meninos” o artista nos conta que os pais separaram-se aos três anos. A letra pungente revela toda dor em crescer sem pai, relação que mudou após o lançamento deste disco, tornando-os mais próximos.
As faixas que seguem durante o show chegam em meio a explicações e devaneios antes mesmo do primeiro acorde. Por pelo menos 5 minutos, o MC divaga sobre a vida. Lembra os amigos com os quais dividiu músicas, como Tiago Mac, por quem tem grande carinho. Fala sobre viver sua verdade.
Ao receber o pedido para cantar uma das músicas com Tiago, o MC fala sobre liberdade artística e a dificuldade em expressar-se por meio das músicas de outras pessoas e também no dia a dia.
Infelizmente, ele não canta essa. Aparentemente é um som que eles precisam reformular a base. Mas canta outras, como “Leões” com o amigo Kayuá:
Eu, rival meu
Leões – Sant e Kayuá
Luto contra minha auto-pressão
Pois quanta frustração cabe num coração, hein?
Pro leão, tragédia é o almoço
Tornei-me carne de pescoço, osso
Com o tempo na selva o que salva é minhas poesias
Em certo momento, antes de cantar “O Mundo ao Norte”, Sant fala sobre sua relação com G8 e o quanto essa música e “Coragem “foram necessárias no momento em que o amigo esteve preso.
A voz sai embargada em “Coragem”, coincidência tal qual quando ele canta que “A estátua do Redentor tá de braços abertos, mas tá de costas pra nóiz”.
Meta é ganhar o oceano, não se apaixonar em anzol
Coragem
Odeio meu país, amo minha terra
Não confunda minha vontade de paz com ausência de guerra
Razão sem emoção? Não, coração que age
Enlouqueço a vida são, não esqueço a visão da lage
Em algum momento Sant para, os olhos cruzam com os de um garotinho de 11 anos: Serginho Smith. Um talento curitibano que, mesmo muito novo, faz rap desde os cinco anos:
Os dois artistas vêem-se refletidos um no outro. O mais velho diz:
“Antes de existirem espelhos a gente se via um no outro.”
Ele continua esclarecendo que, embora possa ser exemplo pra muitas pessoas, é apenas reflexo. Nem sua música, nem sua existência seriam capazes de curar nossas feridas e preencher nossos vazios.
Sant fala sobre fazer música pra não se sentir sozinho e fazer com que seus iguais nunca se sintam sozinhos. No meio do show é exatamente o que vejo: dois jovens de realidades distintas, negros e de origem humilde, opostos em suas relações paternas, gratos pelo encontro que o Hip Hop os procionou.
O MC cita diversas vezes gratidão por essas trocas e conexões. Choro uma dor que, por vezes, não é minha, mas o encontro propicia. Chorando até recompor.
Ele agradece cada membro de sua crew, assim como mostra imensa consideração pelo produtor do evento, o também MC, Arquit3t0, de Curitiba.
São pequenos momentos de ternura e gratidão. São grandes momentos pra memória.
Uma sensação egoistamente reconfortante essa de perceber que outras pessoas sentem como você. Buscam-se como você, perdem-se. Precisam parar.
Acostumar-se com a falta. Pensei diversas vezes durante o show no livro infantil “A parte que falta”. Nossa busca incessante por preencher vazios que não precisam ser preenchidos, necessitam ser aceitos.
Vácuo da minha mente é meu cárcere, meu caso
Anéis, Brincos & Terços
Sumo, fraco demais pra ser só o que querem que eu seja num prazo
Óbvio que vai ser um atraso
Por outro lado, a situação toda deixa um gosto amargo na boca. Amargo por perceber que nem sempre talento e vontade são suficientes. Que somos um Brasil de Paulas, Bolsonaros e Olavos. Meritocracia não passa de ilusão. Nunca tão real foi “Odeio meu país, amo minha terra”.
Somos uma constante luta interna e muito amor. Tanto que surgiu um coral em quase perfeita harmonia para cantar Dizeres. Enquanto Sant falava sobre o talento e amizade com Lourena; sem beat, sem acompanhamento, a gente cantava:
Amor, é que faz tempo que cê me ligou (É que faz tempo)
Dizeres
E eu fiquei aqui a procurar (Eu fiquei aqui)
Motivos que justificassem a tua falta, amor (Amor)
O mesmo aconteceu logo mais com “Olhares”, que é sua faixa em parceria com Cynthia Luz. E eu chorando ainda. Submergida no impacto que é cantar sobre estar no alto e olhar pro chão.
Eu vou cantar pra onde minha voz vá
Olhares
Espero um dia te encontrar por lá
Tão fácil ver que o mundo é um presídio
E que esses altos edifícios são um convite ao suicídio
Aos ares, observa quantos andares
Preserva-te quando andares, olhares
O show já estava encaminhado pro final. Lembro tudo que Sant disse quando participou da série UniVERSOS, da ONErpm. Com quatro episódios, a série conta pela própria voz dos artistas Baco Exu do Blues, Sant, Além da Loucura e Mv Bill, suas realidades.
No documentário ele já expressa a distância entre o que se quer dizer e o que é entendido, em relação à sua música.
Ele já nos contava sobre o cansaço de ser sempre definido pela voz alheia.
Em algum momento a gente realmente deixou de ver.
Com microfone em punho ele sente-se compelido a nos revelar porque informou a todos sobre a sua saída. Foi melhor que sumir. Pra ele, contar sua verdade evitou que, de repente ele sumisse e ninguém nem percebesse.
Um dia espero que ele veja que perceberíamos! Sant parece estar buscando a si mesmo. A procura passou por muito tempo pela cultura do hip hop, que o abraçou. Mas agora ele precisa de novos caminhos.
O artista educadamente recusa-se a tirar foto com um fã e conta que receberá quem quiser encontrar-se com ele, após o show, nos bastidores. Esta escolha tem um objetivo: que todas as pessoas que desejem trocar essa energia com ele tenham a oportunidade.
Como jornalista, a vontade é sempre aceitar uma conversa nos bastidores. Como fã e como ser humano: melhor não.
É preciso respeitar distâncias e aceitar silêncios. Sem tristeza, existe coragem em “Ser feliz pra ter motivação e coração pr’agir enquanto tá vivo.”
Não há por que mais perguntas:
Se eu parar pra ver [parar pra ver] O tempo passou, passou
Mas ainda há tempo pra ser
O que ele quiser
O que ele fizer valer
Meu mais sincero conselho: não percam seu último show!