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O Pior Disco do Ano me fez desistir de virar MC

O Pior Disco do Ano deu substância a um argumento que já discutia com amigos por aí afora: eu não gostaria de ser um MC no atual momento do rap. Digo rap como “gênero musical puro”, música e só (tudo aquilo que engloba técnicas, trejeitos e cartilhas de como fazer para ser um rapper de “sucesso” e dominar a “cena”). Deixo bem claro que não é possível dissociar, particularmente falando, o rap da cultura hip hop, bem como outras expressões musicais de suas origens. As influências existem e tudo converge e se amontoa dentro do processo criativo, mesmo quando, em pensamento, acredita-se numa pureza matricial da ideia. Tudo tem seu peso, influência e valor na hora de meter a mão na massa e realmente produzir algo em prol da arte; seja como circunstância, seja como produto. E é exatamente nesse dual que eu me apego ao dizer — novamente — que não gostaria de ser um MC no atual momento do rap. Coisa que Froid me ajuda a explicar no seu O Pior Disco do Ano.

Independente da abrangência ou da massificação da arte num geral, hoje com boa parte transformada em produto, ainda não é possível desvencilhar o indivíduo do resultado final da produção. Por mais adestrado e bestializado que seja o consumidor da arte segundo opiniões gerais do meio e mesmo com as incursões cada vez mais incisivas e certeiras, em se tratando de mercado fonográfico, das gravadoras e seu aparato comercial, ainda existe um valor sentimental que não é possível quantificar ou equalizar.

Portanto, mantenham a calma! Ainda não vivemos — e não vamos viver — num Admirável Mundo Novo, 1984, Black Mirror ou qualquer distopia que amam encaixar os modelos sociais e culturais que nos subjugam durante nossa breve existência. Aliás, o efeito da distopia é retroativo, tem mais afinidade com o passado que com o futuro. Na real, o mundo nunca deixou de ser um romance gótico, mas isso fica para outro texto.

A questão essencial — e existencial — da minha rejeição à ideia — hipotética — de ser um MC dentro do quadro atual é: o quanto eu sou capaz de me mostrar em detrimento do que eu tenho que mostrar para que o público entenda minha arte, consuma e se dê por satisfeito. Ou, melhor dizendo, quais os reais limites que o público impõe à minha arte quando digo que esta é livre?

Um exemplo dessa liberdade relativa é Vida Loka Pt. 3, com participação do BK’, que carrega o nome e o relativo peso de dar continuidade as icônicas músicas do Racionais. Ambos se utilizam de pontos de vista diferentes dos usados por Mano Brown ao compor, o que não desabona as “originais” ou desqualifica a pretensa homenagem e criação dos artistas em questão. O recorte do público entre “poderiam chamar a música de tudo, menos de Vida Loka” e “vocês não são capazes de entender metáforas e a genialidade do Froid e do BK’”, evidencia o ciclo vicioso em que entrou o público de rap ao avaliar conceito e, em consequência, arte.

Infelizmente, comparações do tipo aparecem em avaliações de todos os trabalhos lançados nos últimos dois anos; e não apenas do Froid, mas de todos os MC’s. Existe um lugar comum, pré-estabelecido, para que a música como expressão circunstancial da arte se mostre satisfatória. Desta forma, contrariando o senso comum imposto pelo próprio público, O Pior Disco do Ano é, senão necessário, digno de nota dentro de um meio inflado por discos conceituais que necessitam de revisores e inquisidores para aproximar a obra de um sentido comum, o mais próximo possível do absoluto. Algo um tanto diferente do conceito-base de crítica ou de senso crítico, mas chegaremos lá em breve.

Antes disso, que fique claro: não, Froid não deixou de pensar no público enquanto produziu o disco. Nenhum artista com o mínimo de visão comercial, bem assessorado e com a capacidade de alcance que ele tem deixaria de fazê-lo. Existe — quero acreditar —, no meio do turbilhão que envolve música e sucesso — e grana —, um senso de responsabilidade, empatia e afeição inerentes à identificação mútua entre artista e público. A questão está exatamente — volto a ressaltar — na divisa entre entregar arte feita sob demanda, como um produto tão somente, ou entregar algo de constituição própria e esperar pela recepção do público, já que é impossível desfazer o hype gerado por um disco escrito e anunciado em abril de 2017, portanto um disco ariano.

Talvez, ser um disco ariano seja o único conceito aparente e aprazível dentre os contextos em que O Pior Disco do Ano foi colocado ou encaixado, quebrando algumas expectativas do público e da crítica. De resto, é impossível coloca-lo em círculos comuns como um disco puramente autobiográfico, ou um embate filosófico entre o indivíduo e algo que transcenda o plano terreno, ou, ainda, uma boa história narrada sob um ponto de vista comum. O disco é abrangente a ponto de tocar em todos esses — e outros — aspectos/tópicos sem pertencer a nenhum em específico.

Incomoda a alguns ouvir e não conseguir definir o todo, capturar os contextos esparsos e não conseguir materializar uma imagem que justifique razoavelmente o porquê do disco ter sido feito da forma que foi, como se tudo necessitasse de uma justificativa para existir. É como se a arte, por si só, não bastasse.

Ficam lacunas entre entendimento, contexto e conceito. Problema grave causado por motivos incertos ou por tantos motivos diferentes, que estamos todos confusos. Talvez seja a audição rápida demais em decorrência da expectativa muito alta ou, talvez, pelo costume em ter informações e significados particionados de antemão em lugares pré-estabelecidos, ou, pode ser, pela simples submissão a fórmulas de fazer rap. Enfim, essa também seria uma divagação para outros textos.

Voltando ao O Pior Disco do Ano, o disco é só uma reunião de circunstâncias. E isso basta. Sua afirmação como obra de “sucesso” depende mais da compreensão da obra pelo público — e nisso o exercício da crítica está incluso — que dos motivos de Froid para tê-lo feito dessa forma.

Pouco se tem discutido sobre a posição que o rap é capaz de preencher como arte, representando nichos culturais estabelecidos e com capacidade única de unir contextos em prol de movimentações extremamente simbólicas e necessárias. A isso não é atribuído somente o valor combativo e necessário de contingentes que abordam raça, classe e gênero, mas a capacidade de gerir e expressar sentimentos e estados comuns à natureza humana de indivíduos em paridade. Trata-se de conexão e troca entre indivíduos que se reconhecem nas suas diferenças. Porém, discute-se mais o que é ou não é rap. E o pior, a discussão já deixou de ser meramente técnica.

Os dilemas e as maneiras de extravasar os diversos estados de espírito os quais estamos suscetíveis vão além da própria realidade e da capacidade de retratá-la claramente aos ouvidos alheios, dando ao trabalho valor maior que os tecnicismos que convencionamos para definir boa arte. Não é preciso que alguém entenda e defina o Renato dentro de estereótipos. Até porque, se o próprio não explica boa parte das referências pessoais que usa para compor, qual o sentido aparente e relevância de Sk8 do Matheus? É verdade tudo aquilo? Ninguém saberia ao certo e não faria diferença nenhuma. Não saber a verdade absoluta não impede que o indivíduo se identifique, idealize e se coloque no lugar do autor. O simples exercício de buscar uma identidade em comum e se reconhecer dentro da arte consumida, torna a arte mais verossímil que qualquer realidade aparente, além de ser uma arma de informação e emancipação do pensamento em potencial. Acredito que seja mais ou menos isso que Froid tem como conceito para O Pior Disco do Ano.

Eu, crítico amador, ainda estou em processo de perceber todas as nuances que me cabem no disco para conseguir elaborar algum material consistente sobre, mas não poderia deixar de tornar essas questões públicas o quanto antes: se Froid entregou o que quis, do jeito que quis e da forma que quis, por que eu deveria classificá-lo dentro de algum padrão que eu não o enxergo? Por que eu deveria levar em conta estereótipos alheios em detrimento da minha própria capacidade de interpretar e criar contextos? Por que eu não deveria dialogar de igual para igual com o disco e, consequentemente, com o Froid? O movimento de crítica tangencia enfrentamentos e foge da raia sempre que possível, quando deveria ajudar a construir uma cena mais saudável e lúcida. Falta coragem. A mesma coragem que me falta para — hipoteticamente — encarar o “rap game” nos moldes conhecidos.

Olhem o mundo a sua volta e percebam: pensar é um ato de coragem.

Lembrem-se: a cultura hip hop versa sobre respeito, reconhecimento, justaposição e apoio mútuos.

Viver o hip hop é uma demonstração enorme de coragem nos dias de hoje.

Coragem, meu povo, O Pior Disco do Ano é sobre coragem.

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