Muito se ouve dizer que 2017 será o ano dos rappers líricos. Exemplos não faltam por aí. Mas reparei que a maioria que repete essa máxima desconhece o que significa lírica. Portanto decidi dividir a minha opinião sobre o que é lirismo dentro do rap.
Antes de começar, gostaria de deixar claro que essas são observações amadoras e eu posso estar redondamente errado.
Bom, o que conhecemos por poesia lírica começou lá na Grécia. Eram poesias feitas num formato diferente, podendo ser acompanhadas por flauta ou… lira! Daí o termo “lírica”. A capacidade de comprimir amplos sentidos dentro de versos mais curtos e “cantados”, aliada à classe da lira, promoveram à lírica um status de algo mais elevado e profundo do que a poesia épica e a poesia dramática.
O mundo ocidental como o conhecemos foi moldado pela cultura helênica e, bom, com a poesia não seria diferente. Os europeus evoluíram o sentido de lirismo para uma elevação sentimental plena. Ou seja, quão mais fundo o poeta mergulhasse nos seus próprios sentimentos ao escrever, mais lírico ele seria.
Acontece que a lírica não depende só do sentimento para existir. Ela depende muito mais que haja uma troca entre o eu-lírico do poeta e o receptor dessa mensagem. A poesia precisa significar algo mais do que palavras para ser completa, senão torna-se algo hermético, fechado dentro de si mesmo, sem um sentido aparente. Sacaram?
O rap, traduzindo as iniciais, é ritmo e poesia. Tudo indica, dessa forma, que o pré-requisito para se fazer rap é ser lírico. Por que?
Se acompanharmos a história do movimento hip hop como um todo, este nasce com profundas bases sociais, numa busca incessante por afirmação dentro de territórios (as famosas batalhas). Versos curtos, rápidos, acompanhando o ritmo e, por fim, cheios de sentimento, mesmo que esses sentimentos estejam contidos num bragadoccio. Assistam (de novo) “the get down” que vocês entenderão melhor.
Sendo a autoafirmação o berço do rap, não podemos deixar de destacar que isso é buscado por razões que só o indivíduo compreende, ou seja, são alicerces muito subjetivos e pessoais. Isso sustenta o rap até hoje, bem como a arte em geral. E é por isso que é um movimento tão variado em estilos. Mesmo que o MC fale sobre aspectos sociais, por exemplo, isso é dado sob uma perspectiva muito pessoal, cheia de subjetividades, portanto, normalmente lírica.
Aliás, são pouquíssimos os rappers que são capazes de construir uma obra “ficcional”. Ou melhor, poucos MCs conseguem se utilizar da justaposição, se colocando completamente no lugar de outrem, com competência. Mas isso é assunto para outro texto.
O lirismo no rap, na minha opinião, é aliar a mensagem que o rapper quer passar com todas as subjetividades que o cercam, conseguindo conversar com o receptor, no caso o público. Ou seja, o lirismo é a união da mensagem e do sentimento que se quer passar com toda a técnica de rap que o MC possui. É lógico que existem referências e técnicas que o ouvinte vai estranhar ou ter que procurar. Arte tem dessas coisas mesmo. Mas a mensagem, o sentido e o sentimento da canção, está ali, é “palpável” e o ouvinte capta isso mesmo desconhecendo boa parte dos artifícios técnicos utilizados. O lirismo vai além da construção da letra, da forma.
Tendo esse sentido de lirismo como base, temos, hoje, uma cena formidável, mas eu destacarei quatro caras: Sant, Diomedes Chinaski, BK’ e FBC (DV Tribo). Esses quatro caras, além de fazer com que o ouvinte mergulhe no sentido do som com pouquíssimas linhas, são capazes de manipular sua poesia a ponto de manipular as subjetividades arraigadas nela. O que isso quer dizer?
Avançamos mais um passo e falamos sobre construção lírica. A capacidade de manipular sentidos e criar impressões dentro da poesia. Entendem como essa parada é avançada? Isso é insano de tão trabalhoso que é e esses caras fazem parecer simples demais.
Sant e Chinaski são mestres em aclimatar a música. Eles te situam desde a primeira linha qual é, pelo menos, o primeiro sentido da sua obra. Não precisamos ir muito longe para descobrir isso, é só pegar os últimos lançamentos de ambos. Mesmo em participações, eles inserem a própria lírica caminhando em conjunto com o sentido da geral da música. Isso é muito forte, porque é através dessa atmosfera lírica que o poeta traz é que sabemos que só ele seria capaz de escrever aqueles versos. O MC pode variar as técnicas que utiliza, o esquema de rimas, a métrica, tudo. O que verdadeiramente o identifica sempre será algo que podemos entender muito pouco, por ser tão subjetivo, e a lírica é parte preciosa desse processo de identidade do rapper.
FBC não fica por baixo, não mesmo! Mas observei algumas diferenças na construção lírica dele e, por isso, resolvi utilizá-lo como exemplo. Ele vai criando vários lugares nas rimas que faz, mas arremata todos eles com frases certeiras. A sensação é contagiante, porque cria esse ambiente de mistério e puxa sua atenção para entender o sentido de tudo aquilo. O domínio das palavras, da técnica, da escrita em si, fica muito pequeno ante o domínio que ele demonstra ao guiar o ouvinte, entregando um caminho obscuro e logo após o iluminando. É caótico e é bonito, tudo ao mesmo tempo.
Já o BK’ fez “Castelos & Ruínas”, o melhor álbum do ano e muito disso se dá por ele ser um “disco conceito”, de ser um projeto que circula em torno dos altos e baixos da vida. Isso é a síntese de todo esse texto, basicamente. Em todas as faixas do álbum BK’ passeia por lugares diferentes sempre arrastando essa temática de “castelos & ruínas”, então, desde a primeira faixa, temos uma conexão muito forte entre os sons. Funciona como um grande romance, daqueles de mais de mil páginas. De repente, você na última faixa tem a sensação de estar voltando a aspectos da primeira faixa. Isso é construção lírica exercida numa primazia nefasta, de tão bem utilizada que foi.
Torço para que mais álbuns em 2017 sejam lançados dessa forma, inclusive. Principalmente por essa nova turma, que traz consigo esse estigma do lirismo.
Existem MCs conceituados por sua lírica que, na verdade, não escrevem com lirismo aparente, igual aos que usei como exemplo. Antes de vocês me xingarem, vou explicar o porquê da minha afirmação. Calma.
Na poesia também existe espaço para esses poetas mais reclusos em si, que exploram o próprio universo não se importando com a aceitação do público. Dois exemplos muito clássicos é o de Rainer Maria Rilke e T. S. Eliot. Ambos, antes de serem entendidos, precisam ser muito bem estudados. É um caso sério. Isso não retira o brilhantismo de ambos e não significa que você não possa gostar deles tampouco. Mas para entende-los, você deve estuda-los, você deve entrar no que eles pensam, pois eles não vão te entregar numa bandeja aquilo que você quer ouvir deles, entendem? Você os descobre extremamente líricos após imergir nos seus respectivos mundos.
Indo para os rappers dessa geração, Makalister é extremamente fechado em si e isso já gerou uma carreata de memes sobre versos dele que ninguém consegue entender. Mob (DDH ou grupo-do-Baco-Exu-do-Blues) um pouco menos, mas é cheio de intransigências interpretativas. ‘Beirando o Teto’ você nem queira tentar entender a ideia pela qual eles constroem as letras, o pouco que eu entendi são umas punchlines soltas. Matheus Coringa é bem subversivo nas suas subjetividades, isso o torna bastante irônico, mas sua ironia atrapalha um acesso fácil ao sentido das suas letras. O próprio Baco Exu do Blues tem um quê bem obscuro na sua construção lírica, ou vai me dizer que você conseguiu entender ‘O Culto’ logo de cara?
Estou estudando para poder conhecer melhor a construção lírica de cada um deles e espero poder voltar aqui para anunciar os resultados disso. Mas não se enganem, esse pouco lirismo inicial desses caras todos não é falta de qualidade. De jeito nenhum! Isso mostra que o rap está evoluindo e se aprofundando em outras áreas, até da própria literatura. O que obriga a nós, meros ouvintes, a estudarmos, sermos mais atentos e menos preconceituosos com os trabalhos que estão surgindo por aí. Todos os MCs citados aqui são grandes letristas, estão produzindo trabalhos muito acima da média e tem conhecimento de rap suficiente para poderem aliar suas melhores qualidades e realizar trabalhos históricos.
Diferente de outros caras da cena que não conseguem fazer sentido mesmo. Não é que a lírica seja obscura, mergulhada em aspectos muito pessoais de cada um. É que não possuem a mínima capacidade de fazer sentido ou são muito rasos, superficiais. Podem até dominar as técnicas, mas não conseguem cativar. Isso é problemático. Inclusive, é problemático quando passamos a analisar a arte por aspectos técnicos. Fica o alerta para todos.
Todo esse texto é para pontuar o lirismo, na minha visão, como algo muito mais profundo do que a forma como o poeta escreve. O lirismo reúne sentido e sentimento como bases, e é passado através da habilidade e argúcia técnica. Então antes de enaltecer a lírica de um MC ou critica-lo pelo mesmo ser ininteligível, é bom conhecermos a forma que esse MC manifesta suas ideias através da música que produz.
É bom lembrar que ao classificar tudo o que um MC faz como sendo lírico, perde-se a noção de toda a técnica que o referido estudou e utilizou na construção dos seus versos. Perdemos aí as famosas metáforas, multissilábicas, word plays e uma infinidade de minúcias.
Portanto, para encerrar mesmo, lírica é algo muito subjetivo para que classifiquemos tudo o que ouvimos como lírico. Por sorte, essa geração é, realmente, muito lírica. Mas o grande barato de ser uma geração lírica, é que as músicas lançadas vêm carregadas de sentido e sentimento. E isso nos obriga a recordar que a arte é, basicamente, isso. Sem preconceitos ou julgamentos precipitados. O que existe são áreas que queremos ou não mergulhar, sem se prender à forma, ao que está, de forma irreversível, escrito.